Crônica da Cidade

Batalha da quarentena

Severino Francisco
postado em 03/10/2020 23:06

O Museu da República tinha tudo para ser um fracasso espetacular. Não é a obra mais inspirada de Niemeyer, foi apelidada de iglu e cuzcuz, é fechada e árida, sem nenhum jardim. Mas vejam como o destino de uma criação arquitetônica é imprevisível. O museu (ou pelo menos as cercanias do museu) foi abraçado pelas novas gerações e tornou-se um ponto de referência da cultura dos jovens na cidade.

É na área externa que rolam as batalhas de poesia improvisada, os espetáculos de dança ou as manobras de skate. E esse movimento naquele território foi desencadeado em 2013 por iniciativa de Gérson Macedo de Oliveira, morador da Vila Planalto. Ele tinha um amigo que sonhava em ser um rapper, mas morreu de maneira trágica.

Gérson quis fazer com que o sonho se realizasse por meio dele. Na época, dançava break, conheceu as batalhas. Logo percebeu que não fazia sentido o modelo de atacar o adversário com as rimas para destruí-lo e passou a transmitir valores culturais, sociais, filosóficos e construtivos. E começou a se destacar.

Contudo, era preciso um espaço para exercitar o improviso, malhar os neurônios, toda semana. Com dois meses de atividade, criou em 2013 a batalha do museu, que se tornou uma referência, atraiu dançarinos do break e skatistas, e se irradiou por uma série de outras batalhas em todo o DF. Hoje, existem 48 eventos do gênero mapeados. É um movimento que mudou a vida de muitos jovens.

Gente que andava de skate ou dançava break passou a rimar. A partir do momento em que alguém sente o desejo de fazer poesia, precisa pesquisar emboladores, os repentistas, os poetas eruditos, o teatro, o cinema e o dicionário. Portanto, a batalha de poesia é um instrumento de conscientização. A cultura respira e se expande. Os jovens, principalmente os da periferia, percebem que é possível traçar outros caminhos para as suas vidas, acredita Gérson.

Brasília é tida por quem não a conhece como uma cidade-fantasma. Mas as batalhas contribuíram, decisivamente, para que a cidade tivesse uma cultura de rua. Elas inspiraram a ocupação cultural dos espaços urbanos com múltiplas atividades. Gérson viajou por quase todos os estados do Brasil para disputar batalhas.

A pandemia esvaziou a cultura de rua em Brasília, mas não silenciou as batalhas. Elas se adaptaram às circunstâncias da crise sanitária e continuaram a rolar virtualmente, com todo o respeito aos protocolos de saúde.

A batalha do museu passou a ser gravada com a participação de, no máximo, quatro a seis MCs, distanciamento e uso de álcool em gel. Virou Batalha no modo quarentena. O embate poético é divulgado pelo YouTube. Com isso, os rimadores garantem a sobrevivência. É um exemplo de resistência e de respeito à vida. Gérson é um dos que contribuem para que as batalhas sejam disputas de inteligência, de cultura e de consciência.

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