Crônica da Cidade

Mafalda e o espelho

Mariana Niederauer
postado em 11/10/2020 22:23

“Todos acreditamos no país, o que não se sabe, a essa altura, é se o país acredita em nós.” Mafalda tem um jeito de traduzir as coisas que as deixa claras como água. Direta, inteligente e sagaz, a personagem de Quino encantou o mundo com seu jeito único de desvendá-lo.

Foi com uma das tirinhas do cartunista argentino que aprendi o sentido de metáfora para além das linhas das poesias ou dos romances. Aquela personagem pequenina chamava-se Liberdade não à toa. Era uma representação figurada de constatação real e precisa, que ainda hoje traduz perfeitamente a verdade dos tempos. A própria Mafalda explica o motivo dessa conexão entre acontecimentos de diferentes épocas: “Não é verdade que o passado foi melhor. O que acontecia era que os que estavam na pior ainda não se haviam dado conta”.

Fã dos Beatles, ela provavelmente encontraria a canção perfeita para ilustrar a situação. Talvez Yesterday ou Let it be. Mas aí ela viria com uma indagação daquelas certeiras, como: “Você já pensou que se não fosse por todos, ninguém seria nada?” E daria o play no toca discos para All you need is love.

No ex libris que carimba as obras da minha estante, Mafalda exibe-se plena e concentrada, deitada de bruços, com as mãos apoiando delicadamente a cabeça, as pernas cruzadas para o ar, concentrada na leitura de um livro aberto à sua frente. Uma imagem metalinguística para registrar a importância desse ato constantemente relegado em meio à rotina atribulada.

Universal não apenas pela variedade de idiomas em que suas tirinhas foram traduzidas, Mafalda se viu, por diversas vezes nos quase 10 anos em que foi desenhada quase diariamente por Quino, em frente a um globo terrestre. Ela encarava a peça como se estivesse diante de um espelho, ciente de sua responsabilidade como cidadã do mundo.

A Terra em preto branco às vezes tinha remendos para sarar feridas. Outras, um aviso de perigo, alertando que ali havia irresponsáveis trabalhando. Diante daquela réplica, mostrou a língua, em sinal de desaprovação, e verteu lágrimas, triste pelas tragédias tanta— ambientais, sociais, políticas ou econômicas.

O planeta, ali, era uma réplica, assim como Mafalda é uma personagem de história em quadrinhos. Na vida real, o mundo perdeu há pouco o homem de carne e osso que a deu voz. Tamanha a potência dessa criação, não se calou mesmo após mais de 60 anos e certamente não o fará nas próximas décadas, mas talvez ainda guarde um tico de melancolia e saudade. “Hoje quero viver sem perceber”, diria, para logo em seguida reerguer-se, confiante, com uma possível solução aos problemas da humanidade: “Já que amar uns aos outros não resolve, por que não tentamos amar os outros aos uns?”

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