Clarice na Asa Sul
“Por duas ou quase três décadas, o centro criador de Brasília se concentrava praticamente no largo espaço de algumas das quadras mais antigas da Asa Sul. Descendo das 900 para as 200, vários complexos ali se instalaram, no início, com o tempo, como o Colégio Elefante Branco, a Aliança Francesa, a Fundação Cultural, que tinha galerias”.
Extraí esse trecho do livro Artes cênicas — A cidade teatralizada, de Celso Araújo (Edições ITS). Mais adiante, ele continua: “Imagine sair do Elefante Branco, no fim da tarde, passando pela Praça 21 de Abril, entrar por acaso numa galeria da Fundação (que ficava na 508 Sul) e deparar-se com uma senhora, sim, a senhora Clarice Lispector, elegante, perfumada, falando para uma pequena plateia!”
Em 1976, Clarice Lispector ganhou o Prêmio de Literatura da Fundação Cultural de Brasília pelo conjunto da obra. Ela ficou contentíssima. O dinheiro não poderia vir em melhor hora. Clarice havia se separado do marido, o diplomata Maury Gurgel, e se angustiava com dificuldades para sobreviver.
Li em várias biografias que, ao receber o prêmio em Brasília, ela teria feito uma conferência sob o sugestivo título Literatura de vanguarda no Brasil. Ao saber da história, coloquei como ponto de honra descobrir o texto de Clarice. Como é que ela escreve algo precisamente, embaixo de nossas barbas, e nós deixamos escapar?
Vesti a camisa do repórter e comecei a varredura pela Secretaria de Cultura. Logo me defrontei com uma situação kafkiana: a funcionária da instituição me perguntou se eu saberia o número do processo. Fiquei indignado, mas a minha fúria durou pouco tempo, pois descobri o texto da conferência de Brasília por outros caminhos que revelarei. Vamos a ela.
Clarice sempre se desinteressou por teoria literária, mas a provocação do tema a levou a formular uma visão original de vanguarda e experimentação, em que a arte e a vida se misturam de maneira indivisível: “O que me confundiu um pouco a respeito de vanguarda como experimentação é que toda verdadeira arte é também experimentação, e, lamento contrariar muitos, toda verdadeira vida é experimentação”.
Clarice nunca permitiu que os textos das conferências fossem veiculados em revistas porque trabalhava muito e não tinha tempo para produzir outro. E foi esse mesmo texto que Celso Araújo ouviu Clarice ler, com voz gutural, na antiga Fundação Cultural, atual Espaço Cultural da 508 Sul: “Procura-se substituir a originalidade por, entre aspas, ‘modismos’ e ‘novidades’, como se fossem a mesma coisa. Só me alegra muito a originalidade que venha de dentro para fora e não o contrário”.
Bem, já é tempo de dizer como encontrei o texto. Descobri a conferência de Brasília da maneira mais trivial e humilhante para um repórter distraído: ela está publicada no livro Clarice Lispector -outros escritos (Ed. Rocco).
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