ESPERANÇA

Kyara Lis está em Curitiba para tomar o medicamento mais caro do mundo

A poucos dias de receber a dose única do medicamento Zolgensma, de cerca de R$ 12 milhões, para tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME), a bebê Kyara Lis e família estão em Curitiba (PR). Aplicação da terapia de genes vai evitar que a menina sofra a perda constante de neurônios motores, que são responsáveis, entre outras funções, pela movimentação e respiração

Bárbara Fragoso
postado em 13/11/2020 06:00
 (crédito: Arquivo Pessoal)
(crédito: Arquivo Pessoal)

Diagnosticada com Atrofia Muscular Espinhal (AME), a bebê brasiliense Kyara Lis, de 1 ano e três meses, receberá a aplicação do medicamento Zolgensma nos próximos dias, no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba (PR). A data não está definida. Desde junho deste ano, a família da criança luta contra o tempo para que a menina tome o remédio considerado o mais caro do mundo, que custa cerca de R$ 12 milhões, antes de completar 2 anos de idade. A família desembarcou de jatinho na capital paranaense no último sábado, 7 de novembro. A viagem foi patrocinada por um grupo de empresários do transporte.

Com 10 meses de idade, Kyara recebeu o diagnóstico da doença pela equipe de médicos do Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília. “Meus pais foram ao hospital por volta do horário do almoço. Eu e a minha irmã Maria Fernanda ficamos ansiosas em casa. Quando eles estavam saindo de lá, ligaram para a gente, dizendo que o diagnóstico de AME tinha sido confirmado. Quando eles chegaram em casa, choramos juntos. Dormimos muito mal. Foi o dia mais triste que enfrentamos até agora, mas ficamos mais unidos”, conta uma das irmãs da bebê, Mayta Rosa, 16 anos, em entrevista exclusiva ao Correio.

Mayta pesquisou sobre o tratamento da AME, até descobrir que o Zolgensma era revolucionário. “Disse aos meus pais para irmos atrás dele. Ao ver o preço do medicamento, percebi que era fora da realidade. Pensei que era melhor deixar para lá. Estávamos muito fracos, digerindo tudo que estava acontecendo. Alguns dias depois, amigos e familiares apresentaram a ideia de campanha que poderíamos fazer para arrecadar o dinheiro do remédio. Não conhecíamos nenhuma campanha assim”, acrescentou. Atualmente, o Instagram de Kyara Lis, administrado pela família, tem quase 70 mil seguidores.

Terapia

A AME é uma doença genética, rara, neuromuscular, grave, degenerativa e irreversível que interfere na capacidade do corpo de produzir uma proteína considerada essencial para a sobrevivência dos neurônios motores (SRM), responsáveis por movimentos voluntários como respirar, engolir e se mover. A neuropediatra Adriana Banzzatto Ortega, responsável pela aplicação do Zolgensma na bebê, conta que a Kyara é a quinta criança brasileira a receber o remédio no Hospital Pequeno Príncipe.

“Após a chegada do remédio, faremos a verificação dos dados do termômetro, que tem todos os minutos registrados em um gráfico, a ser analisado no computador. Se tiver alguma alteração, enviaremos o medicamento para a empresa de biotecnologia que desenvolve tratamentos para doenças genéticas neurológicas raras, e eles enviam outro remédio. Mesmo que o remédio chegue, precisamos ver se está tudo certo”, acrescenta Adriana. Durante a aplicação, a neuropediatra será a coordenadora da equipe médica e de enfermeiros. “Observarei tudo. A aplicação na veia pode durar de uma a quatro horas. Ela pode ficar acordada, deitada na cama ou sentadinha no colo da mãe”, descreve.

Após a aplicação do Zolgensma, a Kyara será acompanhada por diversos especialistas. “Cada criança responde de um jeito. Haverá uma reunião interdisciplinar, com a neuropediatra, nutricionista, fonoaudióloga e psicóloga para a verificação do estado de saúde dela. Há a necessidade de que o trabalho seja feito em conjunto, para que não atrapalhe o quadro de saúde da paciente. A neuropediatra indicará o rumo da terapia dela”, destacou Maíra Coelho, fisioterapeuta das doenças neuromusculares.

“Uma das coisas que mais espero que a Kyara faça, após tomar o Zolgensma, é endurecer as perninhas e ter mais força nos bracinhos. Quando lembro dos momentos mais difíceis, penso que era muito complicado superar todos os desafios e, ainda, conseguir cuidar das outras filhas. Quando juntava tudo, era um pouco desesperador. À noite, quando rezávamos, nos acalmávamos. As palavras dos amigos e das pessoas que nem nos conheciam também nos fortaleciam”, disse a mãe da bebê, Kayra Rocha.

“Olhos brilhantes”

Sociável e carinhosa, a Kyara tem a personalidade forte, relatou a irmã Mayta. “Se quer comer, ela não sossega enquanto alguém der comida. É sentimental. Se falar a palavra ‘não’, ela chora. Acaba sendo até um pouco mimada, porque todo mundo fica perto dela. A Kyara fala com os olhos brilhantes, ama quando a gente comemora as conquistas dela. Quando acorda e vê todo mundo, fica muito feliz”, revela Mayta.

Na contagem regressiva para tomar o medicamento, Kayra Rocha disse ao Correio que o coração está em festa. “Estamos muito felizes por tudo o que está acontecendo. Sempre falo que a história da Kyara nos faz sentir gratidão todos os dias, por tudo que vivenciamos. Temos controlado a ansiedade com oração, ao entregarmos tudo nas mãos de Deus, para que tudo ocorra no tempo dele. Se a gente entra na ansiedade, a gente perde a graça de viver o momento”, desabafa a mãe.

Ovidio Rocha, pai de Kyara Lis, ressalta que conta os dias para que a aplicação do medicamento ocorra. “Quando voltarmos para casa, será uma vida nova. O segredo é realmente acreditarmos no milagre, com a certeza de que Deus nos fortalece. Em alguns dias, acordo pensando se o que estamos vivendo é verdade mesmo. Foram meses de muita luta. A correria só parou um pouco depois que a gente comprou o remédio. Finalmente, a preocupação de que a Kyara perde neurônios motores todos os dias vai acabar”, comemora.

Corrente do bem

Com o intuito de ajudar a família da Kyara a arrecadar o valor do remédio, professores da Escola de Música de Brasília (EMB) e músicos de todo o país participaram da ação Músicos juntos pela Kyara, ao sensibilizar as pessoas nas redes sociais. A família da Matta, de Apucarana (PR), compôs e produziu a canção Brilha, Kyara, brilha, para ajudar na campanha. Além das doações, a mobilização do público contou com outdoors colocados nas ruas do DF, carreatas, rifas e bazares.

Diversas personalidades do país se engajaram na causa, como Anderson Silva, Whindersson Nunes, Glória Pires, Orlando Morais, Jota Quest, Gian & Giovani, entre outros. O cantor Oswaldo Montenegro comemorou a conquista da Kyara. “Fiquei muito feliz e confirmei a minha crença de que o povo brasileiro é generoso e capaz de se unir em causas solidárias. Basta que ele se convença de que o motivo é justo”, disse o músico ao Correio.

Em 21 de outubro, a família de Kyara recebeu R$ 6.659.018,86 para importar o medicamento. O depósito foi feito pelo Ministério da Saúde duas semanas após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) definir que a pasta complementasse a diferença para a compra do Zolgensma. Por meio de doações e rifas, os familiares da criança conseguiram arrecadar R$ 5,3 milhões.

Ministro do STJ, Napoleão Nunes Maia Filho concedeu a medida liminar, em 6 de outubro, determinando que o Ministério da Saúde deveria garantir R$ 6,6 milhões para custear o remédio Zolgensma. “Sempre falo que Kyara deveria ter tomado o remédio quando nasceu. Afinal, a doença causa a falência de neurônios todos os dias”, ressaltou Kayra Rocha, mãe da menina.

Para o desembargador Jirair Aram Meguerian, que concedeu a liminar para garantir o Zolgensma a outra bebê, a Marina Ciminelli, em 26 de março, a solução mais eficaz para conseguir o remédio rapidamente é recorrer à Justiça Federal. “Raramente, os juízes não concedem, alegando o raciocínio de que não compensa tirar despesa da Saúde para uma só pessoa. Uma vida é uma vida. O importante é salvá-la. Eu me convenci da eficácia do Zolgensma porque vi os laudos. Há uma porção de estudos científicos demonstrando que é a melhor saída, a ser tomado até os 2 anos”, alegou ao Correio.

A advogada da família de Kyara Lis, Daniela Tamanini avalia que o grande desafio no caso era cumprir o prazo para que a menina recebesse o medicamento antes de a doença avançar de forma irreversível. “Advogar na área de saúde é muito difícil e desgastante. É uma corrida contra o tempo. Em compensação, a satisfação de ajudar a salvar uma vida é indescritível. No final, tenho a plena sensação de dever cumprido”, revela Daniela.

Atualmente, outras duas crianças do DF precisam do remédio de R$ 12 milhões: Gabriel Alves Montalvão, de sete meses; e Helena Gabrielle, de nove meses.

Saiba mais

1.178 casos de AME

No Brasil, de acordo com dados do Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal (Iname), até 1º de outubro de 2020, foram registrados 1.178 casos de AME, sendo 35% do tipo 1; 34% do tipo 2;
e 25% do tipo 3. Segundo o Iname, a distribuição demográfica da população AME indica 21 casos no Distrito Federal até a mesma data.

Por que tão caro?

O grande diferencial do Zolgensma (onasemnogene abeparvovec) é que o tratamento age na causa raiz genética da AME, fornecendo uma cópia funcional do gene SMN1 com uma única infusão intravenosa, modificando a história natural da doença. A tecnologia atua fornecendo o gene saudável a paciente, visando a correção da mutação causadora de doenças presentes no DNA. O registro do Zolgensma foi aprovado pela Anvisa em 17 de agosto de 2020.

O preço reflete décadas de pesquisas científicas, investimentos em cadeia logística e manufatura em larga escala e custos diretos e indiretos com capacitação de centros de referência, hospitais e profissionais de saúde. Hoje, existem no mercado moléculas de tratamento contínuo, mas o diferencial é que o Zolgensma é de aplicação única. A dose do Zolgensma é baseada no peso do paciente.

Todo o processo de importação é acompanhado de perto, tanto pela empresa transportadora quanto pela Novartis (desenvolvedora da terapia gênica), e o produto é acompanhado por um dispositivo específico para monitorar a temperatura interna do container. O Zolgensma é transportado congelado, a uma temperatura de -60°C e, ao ser recebido no hospital de aplicação, o produto deve ser mantido refrigerado entre 2 e 8°C. A temperatura é monitorada durante todo o transporte.

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    Kyara Lis completou um ano em agosto e só pode tomar medicação até os 2 anos de idade Foto: Arquivo Pessoal
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