Negro, filho de mãe solo, caçula de quatro irmãos. A história de Carlos André de Jesus Campos, 39 anos, é parecida com a de vários jovens do Sol Nascente, cidade onde ele reside há mais de 30 anos. Por meio da profissão de professor, Carlos encontrou uma forma de transformar, em sala de aula, as vidas de crianças e adolescentes que lembram tanto a sua própria.
“Quis trabalhar no Sol Nascente por querer transformar a minha realidade local. Para mudar a realidade de muitos jovens,
cujas histórias refletem a minha vida. No CEF 28 foi onde me encontrei por estar com os jovens da minha quebrada. Tinha muita representatividade, os jovens se envolviam porque sabiam que eu era daqui”, avalia o docente.
Professor de história da Secretaria de Educação do Distrito Federal desde 2015, Carlos André começou a lecionar no CEF 14, em Ceilândia. Em 2017, passou a dar aula em uma escola no Sol Nascente. O curso Mulheres Inspiradoras, da professora Gina Vieira Ponte, foi um divisor de águas na sua vida, como ele mesmo define, e transformou sua abordagem pedagógica dentro da sala de aula.
“Lá, pude entender o que é machismo, questões que envolvem a violência contra a mulher, a condição da mulher na história do Brasil. Foi uma chuva de informação e conhecimento. Em 2019, eu apliquei esse curso redesenhado na escola onde eu trabalhava. Olhei as nossas características locais e vi que o Sol Nascente é um lugar onde há muita violência contra a mulher. Desenvolvi o trabalho aqui, visando transformar a história desses jovens que testemunham violência contra mãe, irmã e vizinha”, explica o professor.
Transformação
O projeto “Elas do sol — mulheres inspiradoras da quebrada” foi desenvolvido em três etapas. Na primeira parte, o professor levou literatura de mulheres negras aos alunos, para que fossem referência para os jovens. Um verso e mei, de Meimei Bastos, moradora de Samambaia, foi um dos livros abordados, assim como Não vou mais lavar pratos, de Cristiane Sobral, e Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo.
Com a leitura, o professor conseguiu valorizar a cultura da ‘quebrada’, ressaltando a política, cultura e resistência existentes no local. Além disso, identificou o racismo que afeta as meninas e os meninos de diversas formas, entre elas o padrão estético, que o professor observou ao perceber que as jovens iam sempre ao banheiro molhar o cabelo na tentativa de reduzir o volume dos fios, por exemplo.
“Foi a partir dessas obras que comecei a imaginar que poderíamos focar mais na questão de combate ao racismo, trabalhar numa perspectiva antirracista, algo preventivo para tentar evitar um estrago maior”, avalia.
Além da leitura, os jovens produziram fanzines, peças teatrais, intervenções e cartazes em que materializaram as reflexões feitas. Por fim, moradoras da região foram convidadas a dividir suas vidas com os estudantes, em sala de aula.
“Eram histórias de mulheres negras, periféricas, mães solo. Tivemos lideranças políticas, diretora de hospital, avó dedicada a manter o neto longe das drogas. O que foi mais impressionante é que em todas as histórias essas mulheres foram violentadas. Os alunos se identificaram muito com aquilo”, avalia o professor.
A partir dos relatos de abusos, histórias sofridas pelos próprios estudantes vieram à tona, e o Conselho Tutelar e psicólogos se envolveram no projeto. Além disso, os jovens também começaram a identificar machismo e racismo em situações experienciadas ou observadas na mídia, conforme relata o professor. “O curso foi para além do currículo. Teve funcionalidade pedagógica, mas não apenas isso. O objetivo era atingir a função social da escola de formar cidadãos críticos, uma formação integral”, completa.
O projeto serviu de inspiração para o selo “Boas Práticas Pedagógicas”, desenvolvido pelo deputado distrital Leandro Grass (Rede), na Câmara Legislativa do Distrito Federal. Também foi reconhecido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), sendo finalista no prêmio Maria da Penha vai à Escola, em 2019.
História
Apesar de considerar o Sol Nascente a sua quebrada, Carlos nasceu no Hospital de Ceilândia, em 1981, ano de inauguração da unidade de saúde. O professor é filho de Maria de Jesus, uma mulher negra piauiense que chegou a Brasília em 1973, vinda de pau de arara do Nordeste, em uma viagem que durou duas semanas, com dois filhos no braço. Na capital federal, ela teve mais dois, Solange e Carlos André, que atribui à família todas as conquistas de sua vida.
Carlos André sempre estudou em escola pública, chegando a andar cinco quilômetros a pé, aos 7 anos, para comparecer às
aulas. Deixou a escola por um ano, por ter de trabalhar, mas retornou e completou o ensino médio. Anos depois, aos 24 anos, decidiu cursar o ensino superior, após motivação de um major, enquanto trabalhava em um quartel. Matriculou-se, então, em história em uma faculdade particular, onde também precisou interromper o curso para se dedicar ao trabalho, mas conseguiu terminar com muito esforço.
Sua mãe e irmã, junto com a esposa, são as grandes referências de vida. A mãe, por ter batalhado, com apoio dos filhos mais velhos, pela subsistência de sua família. A irmã, por sua vez, foi peça fundamental para que ele conseguisse passar no concurso público. Sua esposa, a quem conheceu aos 14 anos na igreja, o apoiou durante esse período difícil, além de ser mãe de seu filho Luiz Gustavo, 8 anos, e de estar grávida da segunda filha do casal, Maria Luiza, que deve nascer em dezembro.
Carlos relata haver críticas por abordar a temática de gênero, sendo homem. Contudo, ele acredita que ocupa espaços que, muitas vezes, mulheres não têm acesso: a casa dos homens, conceito cunhado pela professora Valeska Zanello, do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB). “Eu me vejo como um agente de transformação da casa dos homens porque eu tenho acesso. Tendo esse acesso, posso ser um porta-voz para auxiliar na implosão, de dentro para fora, desse machismo de algumas formas. É um trabalho de formiguinha mas, para mim, já é uma grande conquista.”
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