CINEMA

Filme 'Uma máquina para habitar' retrata Brasília sob olhar estrangeiro

Um mergulho sensível sobre a capital do país está proposto em 'ma máquina para habitar', produção capitaneada por cineastas estrangeiros deslumbrados pela cidade

Ricardo Daehn
postado em 17/11/2020 06:00
 (crédito: Mass Ornament Films/Divulgação)
(crédito: Mass Ornament Films/Divulgação)

Por meio de estudos estéticos e atento a performances de atores sociais, o produtor de cinema Sebastian Alvarez, nascido no Peru, percebeu, em Brasília, a atuação de poder e autoridade em variados níveis. “Como cidade, o poder e o status de ícone de Brasília foram solidificados, por meio da mitologia elaborada, como uma cidade utópica e da promessa que representou para os brasileiros na época de sua fundação. Todos esses ideais pareciam corrompidos e corroídos, como muitos dos edifícios de Niemeyer que precisam de manutenção constante”, comenta o produtor que, por oito anos, juntou-se com amigos para a criação do filme Uma máquina para habitar, dedicado à capital. No circuito dos festivais, ele terá espaço em eventos em lista de países como Canadá, França, EUA, Equador Itália e Hungria.

Inédita em Brasília, a produção contou com drones, balões e helicópteros para captação das imagens que, aéreas, ordenam um filme feito com muito pé no chão e com direção absolutamente primorosa: a cidade nunca tinha sido tão devassada quanto sob as lentes do diretor de fotografia Andrew Benz. Em campo, Benz pode brincar com o fascínio nutrido em livros dados pelo pai, um engenheiro agrônomo que trabalhou na cidade.

“Nas vezes em que visitamos cidades como Gama, Taguatinga, Brazlândia, Sobradinho, Paranoá e Ceilândia, percebemos um surgimento de vitalidade bem diferente à do Plano Piloto. Em parte, porque a configuração do espaço social e urbano era o oposto ao do Eixo Monumental, mas também porque a política do centro tinha um efeito desgastante nas periferias”, observa Sebastian Alvarez.

Ele é quem apresenta credenciais dos codiretores de Uma máquina para habitar: Yoni Goldstein veio de Netanya (Israel), cidade modernista, à la Brasília, contornada por deserto; enquanto Meredith Zielke (também montadora do filme) veio de Detroit, sede da indústria automobilística nos EUA. Ela ficou aficionada por declaração de Juscelino Kubitschek que, certa vez, simplificou a criação da cidade à necessidade de ter “um lugar para construir estradas”.

O interesse exponencial pela cidade, levou a equipe à ramificação de leituras e às entrevistas com oráculos da cidade como o escritor Nicolas Behr, o cineasta Vladimir Carvalho, o arquiteto Frederico de Holanda e os filhos de Tia Neiva (no Vale do Amanhecer).

Guiados pelo Sol e debelando burocracias para ter acesso a locais como a cúpula do Senado, os exploradores estrangeiros recorreram a registro que bebeu da videoarte. Da possibilidade de visualizações de imagens simultâneas, passando pelo eco de múltiplos canais de sonoridade, tudo é monumental em Uma máquina para habitar. Escritos de Clarice Lispector, que nunca tinha visto “nada parecido no mundo” (com Brasília), mas que reconhecia a “cidade no âmago’ do sonho dela, nortearam a equipe. Simbologias ocultas e angústias de incompreensão atreladas a personagens atravessam parte do discurso do filme.

“Em vez de retratar paisagens e conjunturas analisadas por personagens, nosso filme retrata seus personagens como são vistos pelos espaços que habitam: ecos em um mundo fora de nossa percepção. Assim, a atmosfera do sonho não é de nenhum sonhador, mas de Brasília como a geradora de sonhos. Monumentos, sejam em Brasília ou na periferia, são encarnações dos sonhos e pesadelos de seus construtores”, comenta o diretor Yoni Goldstein. Nada passou despercebido às intenções de registro, “da sintaxe arquitetônica às esferas de energia flutuantes assimiladas na cidade”.

Livre associação

Na narrativa, os criadores de Uma máquina para habitar abrem brechas e portais para encadear associações, nem sempre racionais e imediatas. Intencionalmente, alternam dados documentais e um plano de abstração, que reconstroem a visão histórica. Há adoção de vídeo com imagens sujas, de monitores de vigilância e dinâmica em ambientes virtuais (3D), com encenação e performances. Nisso tudo, desponta uma linguagem aos moldes da videoarte. As referências são inúmeras e acolhem dissertações do antropólogo James Holsten e observações filosóficas de Gilles Deleuze, para além do reflexo de cineastas do porte de Patricio Guzmán e Werner Herzog. “Para nós, Brasília foi uma negociação sensorial constante entre a exacerbada estimulação e o mecanismo defensivo de dormência”, demarca Sebastian Alvarez, também roteirista do filme.

Os cineastas, em campo, testemunharam, sempre em estadias por meses durante a seca, as tensões sociais e a ansiedade com os solavancos personificados por Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro. Com propriedade, falam também das lutas empreendidas por brasileiros no fortalecimento da democracia. “Pelas histórias de antigos habitantes da cidade, atentamos ainda para o fato de, como em todo lugar, o neoliberalismo muda a cara da boemia e da recreação das pessoas”, explica Alvarez.

Balizado por um mergulho no Esperanto e ecoando a inconfundível voz de Clarice Lispector, Uma máquina para habitar transborda no inusitado. “Tanto Zamenhof, a primeira autora do Esperanto, quanto Lispector, autora de uma língua singular, estão ligados em minha mente aos profetas judeus e à maneira como eles sofreram por seus sonhos e visões”, esclarece Yoni Goldstein.

Cidade astral

Na opinião do produtor, elementos estéticos do filme, deslumbrantes, resguardam sensibilidade e novas sensações para o espectador. O bom acolhimento em Brasília favoreceu a luz adequada do filme, potente em inovação, especialmente no retrato de Brasília como “cidade astral”. Com emprego da ferramenta Light Detection and Ranging, que manipula noções de tempo e de espaço, sensações únicas brotam deste artifício capaz de suspender o tempo na tela de cinema.

Uma máquina para habitar, mesmo com tanta tecnologia em jogo, se valeu do insubstituível, no humano: foi o carisma e a diplomacia do diretor de fotografia Andrew Benz que aprofundaram o mergulho no Vale do Amanhecer, tornando as imagens únicas. “Durante décadas, o local foi documentado com um olhar explorador e lentes exotificantes que apresentavam pessoas com uma luz patológica”, observa o produtor do filme. Ele diz que a equipe foi movida pela curiosidade sincera e que obedeceu a acordados protocolos espirituais.

O ato de extirpar preconceitos de um grupo arredio na documentação do estilo de vida foi favorecido pela transparência com que Andrew Benz caprichava numa luz indisposta a ofuscar a rotina dos moradores do Vale do Amanhecer. E Sebastian Alvarez conclui: “Entre testemunhar um plenário na Câmara dos Deputados e uma cerimônia de incorporação no Vale, o cerimonial político e o ritual religioso, começamos a ver com mais frequência cultos de Estado e o entrelaçamento ambíguo entre ‘o religioso’ e ‘o político’.”

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