As dedicatórias que apaguei
“O Cruzeiro do Sul é a geografia. O Centro-Oeste é o coração.” Não sei bem o que essa frase significa, tampouco quem a escreveu. Eu a encontrei, há poucos dias, na contracapa de um LP do Vitor Ramil que comprei. Estava lá em azul bic ocupando o espaço inferior esquerdo do disco, delicada, mas consistente. “Du, fevereiro de 1997.” A dedicatória termina assim.
Por muito tempo, tive a ilusão de que apagar o que estava escrito nos discos era possível. Tentei várias técnicas. A que chegou mais perto de funcionar consistia em aplicar, com um pedaço pequeno de algodão, acetona no lugar da escrita. O texto até sumia na maioria das vezes, mas permanecia ali uma mancha branca, uma cicatriz da minha tentativa de reconstruir o passado, de entregar uma capa limpa a um disco que tinha a própria memória antes de me pertencer.
Objetos têm história, mas não por si. Eles só falam pelas interferências de seres humanos como o Du que, em fevereiro de 1997, deu o disco do Vitor Ramil para alguém e resolveu escrever aqueles versos.
Meu Clube da Esquina nº 2 tem uma marca horrível na capa porque tentei roubar dele a quilométrica declaração de amor de uma amiga para outra. Me arrependo, como me arrependo dos momentos em que, a fórceps, tentei retirar rasuras da minha trajetória. Não tem jeito. Nós e os objetos somos como somos porque alguém deixou vestígios, arranhões e não há futuro algum sem essas interferências.
Penso no Du. Penso em quem recebeu o disco. No tempo que pode ter durado a amizade, o amor, não sei. Penso no dia em que a pessoa resolveu se desfazer do LP e seguir em frente. Talvez ainda se lembre do Du com carinho, talvez, quem sabe, até caminhem de mãos dadas e num dia bom contemplem o Cruzeiro do Sul. Talvez se odeiem. É possível que não se gostem e que virem a cara quando passem um pelo outro numa superquadra qualquer ou se vejam nas gôndolas do supermercado em busca do vinho de sexta à noite.
Penso também em por que a pessoa que recebeu o presente decidiu vendê-lo. Talvez a escolha por só ouvir música em mídias digitais, talvez tenha se cansado do disco (improvável, considerando o artista em questão). Qualquer que tenha sido a razão fico feliz que o disco tenha parado por aqui e completado minha coleção de LPs do Ramil.
“O teu nome, Ana, escrito / No braço da minha alma / Persiste como uma estrela / Nas horas intermináveis”, canta o Vitor Ramil em Satolep, a primeira faixa do disco A paixão de V segundo ele próprio, o LP que eu comprei. E o teu nome, Du, escrito na capa do meu disco, persiste como uma lembrança de que tudo — por mais que se vá (e tudo sempre vai) — de alguma forma permanece aqui.
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