Desde que a cientista polonesa Marie Curie descobriu as bases que levariam ao desenvolvimento dos aparelhos de raios X, no início do século 20, equipamentos que permitem enxergar além da superfície evoluíram assombrosamente. As tecnologias de imagem revelam detalhadamente o interior do corpo humano, sem a necessidade de incisões, o que é fundamental para diagnósticos médicos precisos. Porém, nem sempre os “pacientes” submetidos a esses exames são humanos.
Graças ao avanço das tecnologias de imagem, cientistas têm conseguido mergulhar no passado com uma profundidade sem precedentes. De múmias a quadros e peças de museus, equipes de pesquisa valem-se de aparatos que permitem ver mais que qualquer historiador ou arqueólogo seria capaz a olho nu. Técnicas de microscopia eletrônica, que aumentam estruturas em níveis atômicos, resgatam um passado que, de outra forma, literalmente, não viriam à luz.
Foi graças a uma combinação dessas tecnologias que uma equipe da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, desvendou segredos de fabricação de um pigmento, que data de 2 mil anos, presente no retrato de uma múmia egípcia. O quadro, chamado Retrato de um homem barbudo, é do segundo século da Era Comum, quando o Egito era uma província romana. Por isso, trata-se de uma múmia bem diferente daquelas como a de Tutancâmon.
A maioria dessas pinturas vem de uma região chamada Faiyum, e sabe-se que existem cerca de 1,1 mil retratos semelhantes, pintados em madeira e embrulhados nos lençóis que cingiam o corpo mumificado. Os quadros pretendiam demonstrar como a pessoa se parecia em vida, mas, também, tinham como objetivo apontar o status — real ou aspiracional — do morto.
No quadro em questão, o foco da pesquisa são marcas roxas estampadas na toga do falecido. “Na Roma Antiga, o pigmento roxo na toga indicava posição senatorial ou equestre”, conta Glenn Gates, do Museu de Arte Walters, em Baltimore, onde a peça está exposta. Por isso, os historiadores acreditavam que a representação, no retrato, significava uma elevação no status do defunto, na vida após a morte.
A cor roxa, diz Darryl Butt, coautor do estudo, publicado no Journal of Ceramic Engineering and Science, é vista como um símbolo de morte em algumas culturas, e de vida, em outras. Foi associado à realeza nos tempos antigos e ainda é hoje. “Portanto, a presença de roxo, nesse retrato em particular, nos fez imaginar do que ele era feito e o que significava”, diz. “É uma cor que estimula muitas perguntas.”
Feixe de íons
Para tentar responder a algumas delas, os pesquisadores retiraram, cuidadosamente, um grãozinho do pigmento tão pequeno que só poderia ser analisado por um microscópio eletrônico. “A amostra tinha apenas 50 mícrons de diâmetro, quase o mesmo que um cabelo humano, o que tornava seu controle um desafio”, conta Butt. Com o equipamento, Glenn Gates visualizou que o pigmento parecia ser constituído por algum material triturado, porque tinha partículas de 10 a 100 vezes maiores do que as tintas típicas.
O cientista, então, enviou uma dessas partículas para Butt. “Como ela se moveu aproximadamente um milímetro durante o transporte, levamos dois dias para encontrá-la”, diverte-se o cientista. Para movê-la da lâmina de vidro onde se encontrava para o recipiente de estudo, a equipe usou um cílio com uma pequena quantidade de adesivo na ponta. “O processo de análise de algo assim é um pouco como fazer uma cirurgia em uma pulga”, compara. Por menor que fosse a partícula, ainda foi possível decompô-la em amostras menores, com a tecnologia de feixe de íons, que permite analisar partículas do ponto de vista da composição mais elementar.
A primeira constatação da equipe é de que o pigmento do quadro é sintético. O roxo puro, segundo Butt, era proveniente de uma glândula do murex, uma espécie de caramujo marinho. Porém, no caso do retrato da múmia, o que aconteceu foi uma mistura de materiais — argila ou sílica —, com posterior adição de um aglutinante de cera de abelha. O pesquisador explica que o pintor deveria ser muito habilidoso para conseguir obter uma cor tão real, que poderia passar por puríssima.
Impressão digital
Butt conta que esta não é a primeira vez que ele se vale da tecnologia para investigar obras de arte antigas. Ele participou de pesquisas semelhantes anteriormente e acabou desenvolvendo uma palestra, chamada A ciência da arte, que inclui estudos e discussões sobre tópicos que envolvem a ciência por trás de artefatos históricos. “Misturar ciência e arte é divertido”, diz. “É uma ótima maneira de tornar o aprendizado da ciência mais acessível”, defende.
Além disso, o cientista diz que há outros impactos possíveis. “Relativamente, pouco se sabe sobre os retratos de múmias, incluindo se o mesmo artista pintou vários retratos. Analisar pigmentos em um nível atômico pode fornecer a impressão digital química necessária para vincular pinturas umas às outras”, diz. “Nossos resultados sugerem uma ferramenta para documentar semelhanças em relação ao tempo e ao local de produção de retratos de múmias, já que a maioria foi roubada e, por isso, carece de contexto arqueológico”, complementa Gates.
Analisar pigmentos em um nível atômico pode fornecer a impressão digital química necessária para vincular pinturas umas às outras”
Darryl Butt, pesquisador da Universidade de Utah
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Luz ultravioleta revela texto oculto
No Instituto de Tecnologia de Rochester, estudantes descobriram texto perdido em folhas de um manuscrito do século 15 graças a um sistema de imagem que desenvolveram quando ainda eram calouros. Usando imagens de fluorescência ultravioleta, os alunos revelaram que uma folha mantida na Coleção de Artes Gráficas Cary, da instituição, era, na verdade, um palimpsesto, um manuscrito em pergaminho com várias camadas de escrita.
Na época em que o manuscrito foi produzido, fazer pergaminho era caro. Então, as folhas eram regularmente raspadas ou apagadas e reutilizadas. Embora o texto apagado seja invisível a olho nu, a assinatura química da escrita inicial, às vezes, pode ser detectada usando outras áreas do espectro de luz.
“Pegamos emprestados vários pergaminhos da coleção Cary e, ao colocarmos um deles sob a luz ultravioleta, ele mostrou uma incrível letra cursiva francesa escura por baixo”, diz Zoë LaLena, estudante de ciências de imagem do segundo ano de Fairport, em Nova York, que trabalhou no projeto. “Isso foi incrível porque esse documento está na coleção Cary há cerca de uma década e ninguém havia percebido.”
Novas investigações
Steven Galbraith, curador da Coleção de Artes Gráficas Cary, disse que ficou animado ao descobrir que a folha do manuscrito era um palimpsesto porque folhas semelhantes foram estudadas extensivamente por acadêmicos em todo o país, mas nunca testadas com luz ultravioleta ou totalmente reproduzidas.
“Os alunos forneceram informações incrivelmente importantes sobre, pelo menos, duas de nossas folhas de manuscrito aqui na coleção e, de certa forma, descobriram dois textos que não sabíamos que estavam na coleção”, disse Galbraith. “Agora, temos que descobrir o que são esses textos, e esse é o poder da imagem espectral em instituições culturais. Para entender completamente nossas coleções, precisamos saber a profundidade delas, e a ciência da imagem ajuda a revelar tudo isso para nós.”
Persistência
O sistema de imagem foi originalmente concebido por 19 alunos matriculados para o curso experiência inovadora da ciência de imagens. Quando o Instituto de Tecnologia de Rochester mudou para o ensino remoto em março, devido ao surto do novo coronavírus, os alunos não conseguiram terminar de construí-lo, mas, graças a uma doação, três estudantes receberam financiamento para continuar a trabalhar no projeto durante o verão. Esses jovens terminaram de montar o sistema no outono, quando as aulas foram retomadas, e começaram a analisar documentos da Coleção Cary.