Histórias de consciência

Mesmo com aumento, presença negra no ensino superior ainda é minoria

Embora dados mostrem que a presença de negros no ensino superior tem aumentado, eles ainda são minoria. No Distrito Federal, apenas 25% concluíram esta etapa do ensino

Com chuva ou sol, a rotina do estudante Jonas Souza era a mesma: às 15h, ia para a parada de ônibus em Planaltina, onde mora, pegar o coletivo com destino à W3 Sul, onde faz faculdade de engenharia civil. A aula só começa às 19h, mas, com a pouca opção de transportes, essa era a melhor alternativa para não se atrasar. De lá, só ia comer quando voltasse para casa, depois da meia-noite. Essa é a rotina comum a muitos jovens negros que, como ele, sonham com o ensino superior.

No Distrito Federal, mais da metade da população é de negros, segundo levantamento da Companhia de Planejamento (Codeplan). Isto corresponde a cerca de 1,6 milhão de pessoas (57% do total), distribuídas, em maiores proporções, em regiões administrativas de renda baixa e média-baixa, como Brazlândia, Ceilândia, Planaltina, Riacho Fundo e Samambaia. Entre os jovens de 18 a 24 anos que estão na escola ou na universidade, apenas 35% são negros.

De acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad) de 2018, divulgada neste ano, em regiões como Varjão, Estrutural e Fercal, mais da metade da população negra completou, no máximo, o ensino fundamental. Os novos dados, no entanto, indicam o início de uma mudança nesse cenário. O percentual de negros que completam o ensino superior no DF tem aumentado. Enquanto em 2011 apenas 15% alcançavam o diploma, em 2018, esse número passou a 25%.

Em breve, Jonas também entrará nestas estatísticas. Ele conclui o curso no fim do ano e quer abrir uma empresa de engenharia com a irmã, que também fez a graduação na área. É assim que ele pretende pagar pelo curso, bancado graças aos 88% de Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). “Fazer curso superior é um sonho e a escolha do meu curso veio por influência do meu pai, que sempre teve uma pequena empresa de reforma e pintura, e também da minha irmã, que me incentivou muito.” Em paralelo, ele administra, no Facebook, a página Music4lizar, com mais de 2 milhões de seguidores. “Com ela, eu apoio e divulgo os projetos culturais do movimento negro no DF.”

Incentivo

O aumento do percentual de negros que conquistaram o diploma de nível superior no DF pode ser explicado por uma série de ações de acesso, como a política de cotas (leia Para saber mais). É o que explica a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) Catarina de Almeida Santos. “Mas há um problema na questão da permanência e conclusão. Mesmo com uma presença maior de negros, você não os vê circulando nos corredores, porque, geralmente, assistem às aulas e saem correndo para trabalhar”, pondera. “Por todas as dificuldades para se dedicar aos estudos, levam mais anos para terminar o curso. Não é porque ficam reprovando, mas porque não conseguem pegar a mesma quantidade de créditos que os demais. Faltam condições de permanência.”

Na avaliação dela, muito deve avançar antes de se falar em equilíbrio na educação. “Se você melhora desde cedo as condições de vida e a educação básica, para que esses estudantes tenham melhor escolarização e amplia as vagas no ensino superior, com acesso a bolsas, você oferece condições para que essas pessoas possam aprender sem retardar os processos de ensino”, destaca. “Ainda são poucos os professores negros. Esse espelhamento, de ver que aquele lugar de ensino também é para você, influencia muito.”

Graças ao incentivo da família e de professores, a baiana Keilla Flor, 24 anos, ingressou e concluiu o curso de história na UnB. Dedicada aos livros, a moradora de Águas Claras sempre estudou em escolas particulares, onde obteve bons resultados. “Sempre tirava nota alta e todo mundo falou que eu poderia ser o que quisesse. Eu achava o máximo ver como meus professores de história pareciam saber tudo sobre o mundo e eu vi que queria ser como eles”, lembra.

Na família, o irmão mais velho havia se formado em comunicação organizacional, pela mesma universidade, e ela ouviu dele o conselho para aplicar no vestibular por cotas, mas recusou. “À época, eu tinha um entendimento do qual hoje discordo. Achava que, se sou favorecida economicamente, não preciso marcar. Mas, hoje, entendo que as cotas econômicas e as cotas para pretos, pardos e indígenas são coisas diferentes”, afirma. “Não importa se você é cotista ou não. Se você é negro e está em uma federal, vão olhar para você e dizer que você é. Isso não diminui em nada o ser negro. As pessoas é que são racistas e sempre vão buscar manter estruturas de exclusão.”

Keilla segue na vida acadêmica. Enquanto dá aulas para alunos dos ensinos fundamental e médio em escolas de Taguatinga e Sobradinho, ela se prepara para começar o mestrado e, no futuro, está certa de que fará doutorado e pós-doutorado. “Estou feliz com o mestrado. Espero entrar em uma turma com mais negros”, declara.

Ativismo

Para a estudante de ciências contábeis Júlia Rodrigues, 21 anos, o ativismo negro é profundo. No ano que vem, ela terá o diploma da UnB e planeja usá-lo em projetos de cunho social. “Quero seguir a linha de estudo da educação financeira e levar esse conhecimento para as comunidades periféricas, principalmente para mulheres negras, porque acredito que esse é um instrumento de desenvolvimento e poder muito forte.”

Moradora do Jardim Botânico, ela vem de um histórico de educação em instituições de ensino da rede pública e sempre soube que entraria em uma universidade federal. “Queria focar nos meus estudos, sem precisar trabalhar para pagar a mensalidade, porque essa é a realidade de muita gente.” No ensino superior, ela viu o contraste. “Enquanto, na escola, a maioria dos colegas era negra, na UnB, a impressão que tenho, principalmente no período diurno, é de que a maioria dos estudantes é branca. E, professores, só tive um, em sete semestres, que era negro.”

Engajada, Júlia tornou-se embaixadora, neste ano, do projeto ConexãoAfro, que promove a união entre pessoas negras por meio de eventos e de atividades. “Nós geramos debates para levar a discussão para fora. Em um post (nas redes sociais) sobre cotas, a gente conceitua, e fala dos efeitos disso para que as pessoas possam conhecer”, detalha. “Entrei nesse projeto porque é uma luta que eu não conseguia expressar, e encontrei ali uma forma mais democrática de fazer isso.”

Universitários

Dados do Censo de Educação Superior 2019 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), divulgados no mês passado, mostram que o Brasil tem mais de 8,6 milhões de pessoas matriculadas em instituições de ensino superior, mas apenas 613 mil se declararam pretas, o que corresponde a 7,12% do total. No DF, o total de universitários é de 224,4 mil, dos quais 17,3 mil são declaradamente pretos.

Para saber mais

Garantia em lei

A Lei nº 12.711, de 2012, garante a reserva de 50% das matrículas em universidades e institutos federais a alunos do ensino médio de escolas públicas. Essas vagas são subdivididas para atender a diferentes grupos sociais: metade para estudante de com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e metade para aqueles com renda familiar superior a esse valor. Em ambos casos, também há um percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas na unidade da Federação, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A implantação ocorreu de maneira gradual, mas desde 2016 alcançou-se o percentual previsto na norma. A Universidade de Brasília (UnB) foi pioneira entre as federais a oferecer cotas para negros, há 17 anos. Essa reserva de vagas tem como objetivo combater o racismo e, por isso, é irrestrita, ou seja, sem o recorte socioeconômico. O percentual adotado inicialmente era de 20%. Com a aprovação da lei nacional, passou para 5%.