Crônica da Cidade

Aventura literária

Mariana Niederauer
postado em 06/12/2020 23:51

Embarquei numa aventura literária. Ler Ensaio sobre a cegueira em meio a uma pandemia só pode ser classificado dessa forma. A obra de José Saramago é um soco no estômago. Revela, por meio de um texto ficcional, uma face nem de longe fictícia da humanidade. É a verdade escancarada sobre a nossa essência. Nada é preto no branco. Pelo contrário. Da cegueira branca e leitosa que acomete grande parte da população mundial ao mistério da mulher que não a contrai, tudo é cheio de nuances. Todos são mocinhos e vilões. Traidores e heróis. O altruísmo e o egoísmo se alternam, como num pêndulo, e toda a estrutura social feita para equilibrar as oscilações é descartada logo no início do livro.
A apresentação de Arthur Nestrovski é certeira, e não esconde a intenção do autor de causar extremo incômodo e dor — o mesmo que ele sentiu ao escrever o texto, uma de suas obras-primas. “Cada leitor viverá, aqui, uma experiência imaginativa única, no esforço de recuperar a lucidez. ‘Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.’ A epígrafe resume a empreitada do escritor, como de cada leitor. Não se trata só de reparar no significado das coisas, mas também de proceder à reparação do que foi perdido, ou mutilado — “uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos’.” Foi assim, em poucas palavras, que ele resumiu o livro de Saramago.
Se o autor português já não pretendia dar conforto ao leitor, mas sim levá-lo a um estágio de incômodo profundo quando apresentado a essa essência humana complexa e, muitas vezes, cruel, seu estilo característico de escrever adiciona o elemento que deixa a experiência ainda mais dura. Apenas com vírgulas e pontos — às vezes vírgulas no lugar do ponto — ele escreve, com algumas pausas para retomar o fôlego, em capítulos que não se apresentam por título senão pelos tradicionais recuos, vãos em branco no início das páginas.
Sou dessas pessoas que lê e escreve ditando mentalmente. É como ler em voz alta, mas sem dizer uma palavra. Sei que isso atrasa um tanto a evolução no texto — que me desculpe minha solitária parceira do clube de leitura, mas como foi ela quem escolheu a obra de estreia, a culpa me assola menos. Acredito, no entanto, que acrescenta certo prazer ao ato de ler. Como se fosse você mesmo o narrador dos fatos e atriz em monólogo, representando todos os personagens, num aqui e agora que pode durar até a página 300.
Por vários motivos, entre eles todos esses fatores que tornam o livro profundo e inquietante, ainda estou longe de alcançar essa meta e de chegar ao dia de discutir a obra com minha companheira de leitura. Mas quem sabe depois disso eu não volte por aqui para compartilhar também com vocês alguns dos trechos que achar mais interessantes para lermos em voz alta e espantar parte da cegueira que nos assola em alguns momentos.

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