Crônica da Cidade

Escrever a cavalo

Severino Francisco
postado em 17/12/2020 21:30

Se o Prêmio Nobel fizesse uma revisão de seus equívocos, certamente concederia uma láurea póstuma ao nosso pernambucano João Cabral de Melo Neto. Ele é não só um dos mais importantes poetas brasileiros, mas também um dos grandes poetas do século 20. Inventou uma poesia com língua de faca, de pedra, de fuzil e de mandacaru.

O episódio trivial de escolher o feijão para cozinhar é pretexto para uma reflexão sobre o ato de escrever, no célebre poema Catar feijão: “Catar feijão se limita com escrever: / Joga-se os grãos na água do alguidar / E as palavras na folha de papel; / E depois, joga-se fora o que boiar”.

Em seguida, João começa a estabelecer distinções entre os dois atos. Escrever é fluido e rarefeito: “Certo, toda palavra boiará no papel, / Água congelada, por chumbo seu verbo: / Pois, para catar esse feijão, soprar nele, / E jogar fora o leve e oco, palha e eco”. Ele adverte sobre os perigos que se escondem no material a ser selecionado: “Ora, nesse catar feijão entra um risco: / O de que entre os grãos pesados / Entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, / Um grão imastigável, de quebrar dente”.

No entanto, João opta, deliberadamente, por esse grão imastigável, áspero e contundente para escrever. Não por uma obsessão gratuita, mas porque ele perturba a fluência musical a que está ligada a poesia. Quase a cada poema, João funda uma poética: “Certo não, quando ao catar palavras: / A pedra dá à frase seu grão mais vivo: / Obstrui a leitura fluviante, flutual, / Açula a atenção, isca-a com risco”.

A crítica de João aguça a percepção crítica da poesia e inova ao incorporar à criação materiais que, a princípio, não eram poéticos. Mas o perigo é o de que essa percepção se transforme em receita única, a ser repetida por imitadores rasos. É daí que surgem os joões cabralzinhos sem a força do original. Por isso, é fundamental que surjam temperamentos fortes para contestar a fórmula e restituir a liberdade à poesia.

Com essa mira, o poeta carioca Armando Freitas Filho escreveu o poema Caçar em vão. Antes de entrar no poema, é preciso registrar que Armando é fã de João Cabral e incorporou muitos aspectos da poesia do pernambucano em sua obra. Costuma dizer que, mais do que mestres, João Cabral, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira são inimigos poderosos a serem enfrentados.

Se um poeta permanecer apenas deslumbrado ante o fulgor de qualquer um deles, não produzirá uma singular. É preciso escavar a própria voz. Portanto, Caçar em vão é, a um só tempo, uma polêmica poética e uma homenagem irreverente.

O poema de Armando tem um ritmo vertiginoso e não admite cortes: “Às vezes escreve-se a cavalo. / Arremetendo, com toda a carga. / Saltando obstáculos ou não. / Atropelando tudo, passando por cima sem puxar o freio — / A galope — no susto, disparado / Sobre pedras, fora da margem / Feito só de patas, sem cabeça / Nem tempo de ler no pensamento / O que corre ou o que empaca: / Sem ter a calma e o cálculo / De quem colhe e cata feijão”.

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