Crônica da Cidade

por Alexandre de Paula alexandrepaula.df@dabr.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

Correio Braziliense
postado em 20/12/2020 23:14 / atualizado em 20/12/2020 23:14

Corte

Eu me cortei, há alguns meses, ao tirar a rolha de uma garrafa de vinho aberta. Há algo de patético nisso, mas também há o cheiro ferroso do sangue que me enjoa sempre que penso nele. Tenho medo de sangue desde moleque. Consigo me lembrar da vista turva e de mim sentado na cadeira do laboratório à espera da enfermeira que colheria as amostras.

Consigo me lembrar do estômago em rodopios no dia em que cortei o pulso sem querer. A garrafa d’água se espatifando e o corte preciso no lugar errado. Meu avô com sede e eu sangrando. Não sei por que não chorei. Olho para os pontos agora e sinto cheiro de ferro.

Não tenho medo de pensar na morte. Não é isso que o sangue me faz lembrar. Mas, me corrijo: não tenho medo de pensar na minha morte. Toda e qualquer outra me doem. Detesto usar sinônimos para falar da morte, embora os use. Sinto sempre que há alguma canalhice em dizer ou escrever óbitos, por exemplo. “O Brasil teve mais de 200 mil óbitos por covid-19 até agora.” Óbitos. Falecimentos. Eufemismos. Paliativos. Um jeito sutil de enganar sabe-se lá a quem.

Vamos deixar de dizer morte para evitar repetições. Pena que ela mesma, a morte, não se incomode em repetir-se indefinidamente quando não deveria. Um presidente ri com a camisa do Palmeiras e pragueja sobre vacinas. A polícia de um estado mata um menino negro de 14 anos. E seguimos falando em óbitos...

Eu não queria, porém, pensar nisso. Eu me sentei aqui para escrever sobre outras coisas e vou tentar continuar. Não tenho medo de pensar na morte. Não é isso que o sangue me faz lembrar. Vou me repetir porque há sempre um momento em que se repetir é uma necessidade, em que a sujeira do texto é o único resquício, a única réstia de honestidade em tudo que dizemos quando a vida (dos nossos) está explodindo.

Mas, o sangue, volto a ele, me faz pensar na incompetência, no desastre de não conseguir tirar a rolha de uma garrafa de vinho aberta sem me machucar, na incapacidade de atravessar ruas sem medo de chegar ao outro lado. Na falibilidade da espécie humana, pois. Temos, quase todos, bebido um pouco demais nesses tempos de pandemia, comido mais do que deveríamos, como se taças de vinho e junk food pudessem pausar o instante eterno de terror e dar algum alívio. Tento não me sentir culpado. Logo, no entanto, sinto a camiseta apertar. E vejo meu corpo como um King Kong fake de filme B. Algo, entretanto, me diz que tanto faz.

Penso, agora, nas canções de Jorge Drexler e nas melodias de Vitor Ramil. Penso no farol de Cabo Polônio que não conheci, nos 12 segundos de escuridão que guiam os navegantes e na inveja que eu tenho de versos como “no es la luz lo que importa en verdad/son los 12 segundos de oscuridad”. Talvez, Jorge, a gente só busque mesmo o rumo de volta sem querer encontrá-lo ou, quem sabe, com a certeza de que, a partir de agora, teremos, o tempo todo, de inventá-lo.

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