Em 6 de junho de 1997, a jornalista Adriana Araújo, 48 anos, na época com 25 anos, escutou o que mais temia: “não está tudo bem com a bebê”. Grávida de cinco meses, ela se viu perdida após uma consulta de rotina do pré-natal. No ultrassom, a primeira descoberta: “pé torto congênito”, os pés não estavam se desenvolvendo como o esperado. Um susto que veio com muitas apreensões e uma grata surpresa, seria uma menina. No entanto, os meses que se seguiram foram enfrentados com o coração apertado. Adriana conta que a cada consulta e exame, novas suspeitas apareciam: tíbia da perna direita encurtada e má formação da mão direita. “O final da gravidez foi angustiante, mas nos deu condições de ter um atendimento ortopédico após 12h do parto — o início dos muitos tratamentos ao longo de 15 anos”, relata a mineira, que enfrentou o desconhecido relacionado à condição da filha sem Google ou Internet, mas com muito amor e perseverança.
A trajetória ao longo de 23 anos, de mãe e filha, entre cirurgias e consultas médicas, se transformou no livro Sou a mãe dela. Na obra, Adriana rememora alguns fatos que marcaram essa jornada, que não foi fácil. A ideia de escrever uma obra literária surgiu por acaso. A jornalista conta que sempre teve o costume de escrever histórias, como um diário, algo bem pessoal. Quando ela estava escrevendo sobre a gratidão que sentia pelos médicos que atenderam sua filha Giovanna, o desejo de que isso viesse a público foi maior. Em dezembro de 2019, iniciou o processo de escrita do livro lançado no mês passado pela editora Globo.
Giovanna foi diagnosticada com hemimelia fibular, uma deformidade ortopédica, congênita e rara. Em termos simples, a criança nasce sem um osso de sustentação da perna, a fíbula. A condição pode afetar uma ou as duas pernas, a depender do caso. A ausência da fíbula prejudica o equilíbrio e o crescimento da perna afetada e exige tratamento cirúrgico de alongamento ósseo. Giovanna nasceu sem a fíbula da perna direita, além do pé torto congênito esquerdo, falta de dedos nos pés (dois no lado direito e um no esquerdo) e a mão direita tem apenas dois dedos (o polegar é mais largo, porque apesar de ter a aparência de um dedo, na verdade são dois colados).
Em resumo, Giovanna veio ao mundo em 6 de outubro de 1997, por parto cesárea, com 42 centímetros, 2kg e apresentando diferenças físicas — algumas foram minimizadas com cirurgias para dar melhor condições de vida. Nada de deficiente, como a mãe Adriana defende em um capítulo do livro.
“Deficiente. Você faz ideia do que significa para uma mãe ouvir essa palavra? Provavelmente, não. Ninguém pensa nisso. Nunca havia pensado até me ver diante das toneladas que dez letras podem pesar. Te digo: doí, doí muito. Me doeu o rótulo e me doei às consequências dele, imaginar minha menina poderia crescer ouvindo isso, se sentindo menos inadequada, imprópria”, relata Adriana, em um trecho do livro. E com essa convicção, Giovanna pôde fazer tudo, ou quase tudo, que uma criança sem limitações poderia fazer. “Deixei-a experimentar tudo. Ela lutou judô, dançou balé, de tênis ou até descalça, porque não havia sapatilhas adequadas para ela, mas só para ter um gostinho de dançar balé. Ela teve uma infância feliz”, destaca Adriana.
“Tadinha, não”
Ao longo dos anos, Adriana se blindou com a armadura de mãe para conter os comentários que, não por maldade, surgiam. “Algumas vezes o mantra “tadinha não” vinha acompanhado de uma explicação, de como evitar aquela palavra poderia fazê-la crescer mais segura e confiante, com autoestima”, explica.
Mãe e filha encararam o mundo da melhor maneira possível e com uma rede de apoio por onde as duas passavam. Os primeiros anos de vida foram vividos na terra natal de Adriana, em Belo Horizonte, onde Giovanna passou por quatro cirurgias. Em junho de 2002, Adriana e Giovanna chegaram ao Distrito Federal. “Brasília surgiu como um oásis na nossa história. Um descanso das cirurgias”, afirma a mineira, que encarou os desafios da cobertura jornalística da política nacional, enquanto via a filha crescer com os momentos do domingo de manhã no Eixão, andando de bicicleta ou nas brincadeiras nos parquinhos das entrequadras.
O ano de 2006 foi marcado pelo início de uma das fases mais difíceis do tratamento: as cirurgias de alongamento ósseo. O médico que acompanharia nessa fase ficava em São Paulo, então, mãe e filha embarcaram para o estado paulista para dar prosseguimento a algo que não dava mais para esperar. A diferença entre as duas pernas de Giovanna chegava a 5 centímetros. “Se não fosse feito nada, a diferença entre as duas pernas poderia chegar a 12 ou 15 centímetros na adolescência”, desabafa Adriana.
Jornada
Ao todo, foram 15 anos de luta, com quatro cirurgias corretivas e seis alongamentos ósseos. “Por dez vezes, me despedi da minha menina na porta do bloco cirúrgico implorando ao universo que não fosse nosso último momento juntas. E por dez vezes, agradeci a benção de recebê-la de volta, dez vezes vendo a minha menina enfrentar bravamente as dores do pós-bisturi, a morfina, os pinos com ferida exposta na perna, os penosos tratamentos ósseos, meses e meses de cadeira de rodas e muletas, sempre com a serenidade impressionante. Por quinze anos ocultei meus medos e minhas dores, engoli o choro na frente dela”, relata Adriana, em um trecho do livro Sou a mãe dela.
A última cirurgia ocorreu em 2013, com a reconstrução do pé direito de Giovanna. Foram cerca de dez horas no bloco cirúrgico, que no final deu um alívio para as duas, mãe e filha, que puderam encerrar a maratona em busca de qualidade de vida. Atualmente, Giovanna Araújo está cursando a faculdade de medicina, na Escola Paulista de Medicina.
Serviço
Sou a mãe dela
Editora Globo
R$ 44,90
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.