Este 21 de dezembro de 2020 marcou a passagem dos 40 anos da morte de Nelson Rodrigues, nosso mestre da crônica e do teatro, nosso profeta do óbvio. Durante a era de ouro do futebol brasileiro, ele dizia que era preciso um Shakespeare para narrar a saga. No entanto, o próprio Nelson foi o nosso Shakesperare de chuteiras, primeiro a sagrar a majestade de Pelé e a eternizar os dribles de Garrincha, em que só faltava Chopin como fundo musical.
A última crônica que escreveu não poderia ser mais dramática, épica e comovente. Nelson estava muito doente, debilitado desde os anos 1930, quando sobreviveu a uma tuberculose. Naquele tempo não havia vacina. A doença no pulmão se irradiou pelo corpo e fragilizou, especialmente, o coração.
Estávamos no início de dezembro de 1980. Disputavam a final do campeonato carioca o Vasco da Gama e o Fluminense, time do coração de Nelson há 60 mil anos antes do paraíso. O médico e amigo do cronista, doutor Stand Murad, recomendou expressamente evitar qualquer emoção mais forte.
Nelsinho Filho proibiu que o pai ligasse o radinho de pilha e prometeu relatar todos os lances com detalhes. Ambos estavam com 200 megavolts de tensão. E se o Vasco fizesse um gol? E se o gol fosse do Flu? E se o Flu empatasse e virasse o jogo? E se o Vasco revertesse o resultado? Não importava, qualquer placar era perigoso.
Nelsinho tremia de emoção, mas desconversava: “O Flu está bem”. A partida virou 0x0. E logo no início do segundo tempo, o zagueiro Edinho cobrou uma falta e fez o gol que daria o título ao Fluminense. Nelsinho chorou lágrimas de esguicho, mas segurou a notícia. E se o Vasco virasse? Ufa, finalmente, o drama acabou. Contudo, havia ainda o mais difícil: como contar a Nelson sem desencadear uma violenta emoção.
Com habilidade, Nelsinho declarou de maneira contida: o Fluminense era campeão. Nelson não tinha forças, mas arrancou um grito: “Preciso escrever”. Não conseguia ordenar as palavras. Resolveu ditar para Nelsinho a última crônica: “Amigos, em futebol, nunca houve uma vitória improvisada. Tem sido assim através dos tempos. Tudo começou há 6 mil anos. Vocês compreenderam?”.
E, notem, Nelson não havia acompanhado o jogo sequer pelo rádio. A crônica foi publicada em 2 de dezembro e, 18 dias depois, em 21 de dezembro, Nelson morreria: “A maior dignidade da morte é física. Nunca o homem é tão belo como quando está morto”, escreveu Nelson. “´Porque então tem assegurada a eternidade. É na morte que o homem tem o seu rosto verdadeiro. Na vida, usamos máscaras sucessivas e contraditórias. Só a morte revela a nossa verdadeira face”.
Em uma entrevista a Otto Lara Resende, ao ser perguntado sobre quais seriam as suas últimas palavras no leito de morte, Nelson respondeu: “O Marx é uma besta. Que boa besta é o Marx!”. Nelson ficava indignado com o fato de o filósofo alemão nunca ter escrito nenhuma linha sobre o tema essencial.
Mas Nelson partiu feliz, no êxtase do campeonato levantado pelo Fluminense: “A morte é um grande despertar”, intuiu o nosso profeta do óbvio.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.