Crônica da Cidade

Fábula natalina

Severino Francisco
postado em 24/12/2020 16:34

Existem obras antigas que parecem ter sido criadas neste exato momento que vivemos. Esse é o caso de Conto de Natal — traduzido também como Canção de Natal —, obra-prima de Charles Dickens. O livrinho, com pouco mais de 100 páginas, saltou do papel impresso para múltiplas versões em animação, em peças de teatro e em películas do cinema. Mas o interessante é que o Conto de Natal ganhou uma atualidade dramática em tempos de coronavírus.


Dickens tinha 36 anos e era um escritor famoso quando escreveu a obra, em 1843, pouco antes da festa que celebra o nascimento de Cristo. O sucesso foi imediato. É uma história simples e encantadora. Narra o encontro de Scrooge, um patrão ranzinza e avarento, com três fantasmas: o do passado, o do presente e o do futuro.


Scrooge é o anti-Natal em carne e osso. É daqueles tipos que, se alguém lhe desejar feliz Natal, é capaz de responder com um impropério. Em uma frase, Dickens traça um retrato magnífico do corpo e da alma gélida do personagem: “O frio que havia dentro dele gelava sua velha fisionomia, pinçava-lhe o nariz pontudo, engelhava seu rosto, enrijecia seu passo, fazia seus olhos ficarem vermelhos, tornava azuis os lábios finos; e se manifestava, cortante, em sua voz áspera”.


Mas Scrooge passaria por diversas metamorfoses, rumo à redenção humana, ao se encontrar com os três fantasmas. Antes, o espectro de Marley, morto há sete anos, sócio de Scrooge em uma casa comercial, aparece para avisar sobre o que virá. Marley carrega correntes e é consolado pelo sócio: “Você foi um bom negociante”. Ao que o espectro replica: “Negociante? Meu negócio era a humanidade. As operações comerciais que desenvolvi não passavam de uma gota de água no imenso oceano do meu negócio!”.
O fantasma do passado conduz Scrooge a cenas e personagens da infância, reacendendo valores generosos e experiências felizes, que tocam seu coração e o tornam mais leve. Já o fantasma do presente empresta novos olhos a Scrooge, para que ele perceba os dramas dos outros e se torne mais solidário.


O terceiro fantasma, o do futuro, não fala; só indica, aponta e sugere. Mostra a Scrooge um senhor que morre abandonado, solitário e alvo de maledicências. Em determinado momento, Scrooge descobre, com horror, que aquele homem era ele.


E, por todas as experiências vivenciadas com os três fantasmas, resolve mudar completamente o ânimo, a atitude e o rumo de sua vida: “Estou me sentindo leve como uma pena, feliz como um anjo, alegre como um menino. Minha cabeça dá voltas como se eu estivesse bêbado. Feliz Natal para todo mundo!”.


Conto de Natal é a história de um patrão ranzinza e avarento, mas transcende essa circunstância. Provoca uma reflexão sobre os liames entre o passado, o presente e o futuro. O Natal não é abordado apenas como um período de exceção para exercitar um espírito mais generoso. É um ponto de partida para uma revisão dos valores que norteiam nossas vidas durante o ano inteiro.


O Natal que tivemos neste 2020 é resultante do que fizemos no passado. É uma visão bastante realista sobre nossa relação com a mais importante festa cristã. Essa fábula moral nos convida a refletir sobre a responsabilidade total na construção de nosso destino. O Natal de 2021 será o Natal que estamos construindo agora. Feliz Natal para todos!

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação