Crônica da Cidade

por Mariana Niederauer mariananiederauer.df@dabr.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

Correio Braziliense
postado em 27/12/2020 23:19

Letra de gente grande

Finalmente consegui. Tenho letra de gente grande. De tanto escrever no teclado do computador ou no smartphone, quase a transição passou despercebida. É que, mesmo depois de treinos de caligrafia, da escolha da caneta e da superfície perfeita, aquela escrita no papel ainda parecia imatura. Faltava experiência nas mãos e firmeza no traço.

No dia a dia, a pressa das anotações só deixa aflorar um garrancho quase ilegível. Nada que mereça orgulho. Foi no momento de preencher os cartões de fim de ano, despretensiosamente, sem tentar demais, mas também sem correr em desabalada carreira para não perder a fala do entrevistado, que saiu. Era letra de gente grande. A minha letra. Um dos momentos de epifania banal da vida.

Minha mãe orgulhava-se do fato de eu ter sido alfabetizada em letra cursiva. Na escola em que comecei a cursar a primeira série, na cidade para a qual acabávamos de nos mudar, as crianças aprendiam primeiro a letra de forma. Não acho que haja alguma relação com o fato de fazer uma boa caligrafia hoje, mas me lembro de admirar a letra dela também. Bem desenhada e caprichada. Por mais que tentasse, a minha sempre parecia meio torta, assimétrica. O jeito era ter paciência e esperar o tempo agir para um dia, talvez, alcançar algo próximo da perfeição, como uma lousa impecável das professoras da alfabetização.

Havia sempre a opção de fazer exercícios. Repetir, repetir, repetir, até que o texto saísse digno de convite para festa de casamento. Mas, essa paciência eu não tive. Até que um dia as mãos começaram a fazer movimentos praticamente involuntários. Aquela forma como o cedilha vira o til em cima do “a”. E o próprio “a” maiúsculo que antes não se decidia se ficava redondo ou mais afunilado, com uma voltinha no centro. Da noite para o dia, tudo isso tomou forma. Sem treino além daquele do dia a dia.

Tem gente que tem dons diferentes nesse campo. Meu pai, por exemplo, tem uma letra de “dia a dia” sofrível. Poucos conseguem entender se ele não fizer um esforço para escrever algo mais legível. Consegue, no entanto, reproduzir qualquer uma. Mais arredondada, de forma, alongada ou em estilo vintage. Uma veia artística que também se mostra em pinturas abstratas pela casa.

Estou aqui há várias linhas me gabando da tal letra de gente grande, mas, só para deixar claro, ela nada mais é do que isso mesmo. Uma simples evolução da caligrafia da juventude, que, por sua vez, foi uma evolução da caligrafia da infância. Ainda não tenho aquela sonhada letra digna de um poema de Vinicius ou Drummond. Dos contos de Clarice ou dos versos de Cora Coralina. Essa nova fase ainda está por vir. Suave como a pena no papel.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação