Luta pela vida

Mães relatam batalhas que enfrentam ao lado dos filhos com doenças raras

Receber o diagnóstico foi o início de uma batalha constante contra doenças raras dos filhos. Mães relatam como tem sido encarar essa realidade difícil e como as redes de solidariedade ajudam na trajetória

Cibele Moreira
postado em 28/12/2020 06:00
 (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press                             )
(crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press )

O ano de 2020 foi marcado por uma rede de solidariedade em diversos sentidos. No momento de pandemia, crise econômica e instabilidade financeira, houve, também, espaço para uma corrente do bem entre as pessoas. No meio do choro, um sorriso, uma esperança. Foram cestas doadas, ações voluntárias para ajudar quem precisa e, além disso tudo, também teve a luta e o amparo às famílias que têm crianças com doenças raras no Distrito Federal. Histórias como a de Kyara Lis, Helena Gabrielle, Gabriel Alves e Ana Vitória. Elas dependem de medicações caras, que não são ofertadas no Sistema Único de Saúde (SUS), e lutam diariamente pela vida. O Correio conversou com essas mães para contar a história delas, sobre como é conviver com a incerteza do dia de amanhã, entre rotinas médicas e o crescimento dos filhos, e o alento da ajuda de amigos, familiares e pessoas que se mobilizaram pela causa.

Para a advogada Kayra Dantas Rocha, 39 anos, gratidão é a palavra que resume os últimos seis meses da família na busca pelo remédio mais caro do mundo para a filha Kyara Lis, de 1 ano e 4 meses, diagnosticada com atrofia muscular espinhal (AME) do tipo 2 — doença degenerativa que interfere na produção de proteínas essenciais para a sobrevivência dos neurônios motores. “Sempre escutamos que, depois de Kyara, a vida de quem participou desta história nunca mais foi a mesma, inclusive a nossa. As pessoas choraram, rezaram, vibraram, lutaram, gritaram e amaram junto conosco. Mostraram que o amor muda, salva uma vida. O amor pode tudo!”, destacou a mãe.

A batalha contra o tempo iniciou-se em meados de junho. “No primeiro mês de vida, a Kyara Lis tremia as mãozinhas. Ela chorava quando a gente a colocava de bruços. Com o passar dos meses, percebemos que as perninhas dela estavam perdendo a força. Diante da pandemia, pedimos uma consulta presencial de urgência com a pediatra”, relata a advogada. Após exames, veio o diagnóstico: AME do tipo 2, uma doença que, com o passar do tempo, vai atrofiando o corpo, com dificuldade para se movimentar, engolir e até respirar.

O choque de receber a notícia foi enorme. “Os primeiros três dias após o diagnóstico foram acompanhados de muito choro. Só após esse tempo, procuramos profissionais de referências para nos explicar a doença e tratamentos”, relata Kayra. O entrave inicial que a família enfrentou foi conseguir a medicação Spinraza, que retarda o avanço da doença. “A nossa primeira luta foi judicial, pois o SUS só fornece, infelizmente e muito revoltante, o Spinraza para crianças com AME tipo 1”, explica a advogada. De acordo com ela, a medicação foi fundamental para a preservação das funções vitais e motoras de Kyara.

Começou, então, uma mobilização para angariar dinheiro para outra medicação capaz de impedir o avanço da doença. O remédio Zolgensma, que custa cerca de R$ 12 milhões, é considerado o mais caro do mundo e não está disponível no Sistema Único de Saúde. Campanhas de doação, carreatas e rifas ajudaram a família a juntar parte do dinheiro. Porém, os R$ 5,3 milhões arrecadados não eram suficientes. Em outubro, o alívio chegou junto com a complementação dos

R$ 6.659.018,86 feito pelo Ministério da Saúde, após ação judicial, para importar o medicamento.

Kyara Lis recebeu a dose única do Zolgensma em 19 de novembro, no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba. A mãe, Kayra, conta que a filha apresentou melhoras em poucos dias. “Com 10 dias ela já realizava movimentos que não fazia antes. Rolou com mais rapidez, ficou com a coluna mais ereta, pegava objetos à sua frente e voltava sozinha. Começou a falar mais alto e a ficar de bruços sem chorar, por sentir confiança ao conseguir levantar a cabeça. Enfim, ela se joga, está autoconfiante, e a cada dia superando limites e nos surpreendendo”, relata a advogada.

A batalha continua

Assim como Kyara Lis, outras crianças do DF e Entorno também precisam do Zolgensma. É o caso de Helena Gabrielle Ferreira, de 10 meses, e de Gabriel Alves Montalvão, de 9 meses, ambos diagnosticados com AME do tipo 1. As famílias lutam na Justiça para conseguir a medicação e têm contado, também, com apoio de amigos, familiares e pessoas mobilizadas pela causa para juntar o dinheiro necessário para a aplicação do remédio. Para Neicy Fernanda Ferreira, 25 anos, mãe de Helena, estar nesta situação é “como um sequestro onde pedem o dinheiro do resgate. É uma corrida contra o tempo, porque a AME não espera”, afirma a moradora do Santo Antônio do Descoberto (GO).

Com apenas 10 meses, Helena é uma guerreira. Ela venceu a covid-19 e, diariamente, traz forças para a mãe, que se viu sem chão com o diagnóstico da filha. “Meu mundo desabou naquele momento. Foi um choque muito grande, uma doença muito cruel. Ouvir dos médicos que eu tinha de aproveitar a minha filha ao máximo, aquilo me destruiu”, relembra Neicy. “Quero ver minha filha correr, brincar. Ela ainda vai surpreender muito a gente. Aquele fantasma que assombra a AME não existe mais, há uma solução. A gente tenta ser forte todos os dias e minha filha transmite essa força pelo olhar, como se ela dissesse: ‘força, mãe, eu estou aqui’”, relata.

Desempregada e com o marido também desempregado, Neicy é grata pelas pessoas que a têm ajudado com doações. Em 14 de dezembro, a Justiça determinou que a União pague pelo Zolgensma. A decisão foi dada pela promotoria da Justiça Federal de Anápolis (GO). No entanto, como o Ministério da Saúde e nem o Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestaram, a família segue com a campanha para comprar o remédio.

Câncer raro

Diferentes no diagnóstico, iguais na busca de uma medicação cara e que não está disponível no SUS. Ana Vitória, de 1 ano e 10 meses, tem histiocitose multissistêmica — um tipo de câncer raro que afetou o fígado, a pele e as partes íntimas dela, e que não tem cura. A mãe, Rogéria Valéria Santana Antunes, 37 anos, conta que a luta para descobrir o que a filha tinha iniciou assim que ela nasceu. “Quando me entregaram a Ana Vitória na maternidade, eu senti um cheiro muito forte no ouvido dela. Na época, questionei os médicos, que me falaram que não era nada. Mas ao longo dos meses, fui percebendo que havia algo de errado”, relatou Rogéria.

Ana Vitória começou a ter lesões na pele. Estava com o baço e o fígado de tamanhos elevados para a idade dela. Preocupada, a moradora do Paranoá levou a filha a vários hospitais até que, no meio do ano, descobriu o diagnóstico. Nesse meio tempo, Ana Vitória quase morreu três vezes, e precisou de uma transfusão de sangue. Com a saúde frágil e não aguentando as sessões de quimioterapia, os médicos encontraram uma medicação com resposta imediata. Porém, o remédio custa cerca de R$ 9,8 mil e não está disponíveis no SUS. Rogéria entrou com uma ação na Justiça para conseguir a medicação.

Angustiada pela situação da filha, Rogéria iniciou uma campanha on-line para conseguir o dinheiro do remédio. “Vivo intensamente um dia de cada vez. Ana Vitória tem me ensinado a ser uma pessoa melhor. Só quem passa por uma situação dessa sabe o quanto é difícil”, conta. Para ela, um dos momentos que mais marcarcaram foi quando a filha deu os primeiros passos, com 1 ano e 10 meses. “Eu estava arrumando a casa, quando a minha sobrinha, que estava brincando com a Ana Vitória, começou a incentivar ela a andar. Ver essa cena foi a melhor sensação do mundo”, destaca.

 

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Atendimentos na rede pública

De acordo com a Secretaria de Saúde, de janeiro a novembro foram registrados 1.231 atendimentos a portadores de doenças raras na rede pública do Distrito Federal. O tratamento é oferecido na Unidade de Genética do Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), serviço de referência, habilitado pelo Ministério da Saúde há um ano. No HMIB, são atendidas crianças com até 9 anos e 11 meses, encaminhadas por médicos das Unidades Básicas de Saúde. Crianças a partir dos 10 anos, adolescentes e adultos são atendidas no Hospital de Apoio. Segundo a pasta, por ano, aproximadamente 100 bebês são diagnosticados com doenças raras no DF, por meio do teste do pezinho.

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