ESPECIAL

"A vida vencerá", diz arcebispo de Brasília em entrevista sobre transição para 2021

Em especial de fim de ano, o Correio entrevista representantes de diferentes religiões para saber como encaram o momento de pandemia e a transição para 2021. Na primeira matéria da série, o arcebispo de Brasília, Dom Paulo Cezar Costa, fala sobre o poder da solidariedade

Hellen Leite
postado em 29/12/2020 06:00 / atualizado em 29/12/2020 16:10
 (crédito:  Minervino Júnior/CB/D.A Press)
(crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press)

Os impactos provocados pela pandemia do novo coronavírus não escolhem cor, gênero, classe social ou religião. E é fato que o vírus colocou a inteligência humana diante do desafio de desvendar como enfrentá-lo. Essa descoberta não se restringe ao campo técnico e científico, mas também inclui os desafios socioculturais, o que admite uma reflexão sobre como a fé pode ajudar as pessoas a lidar com as consequências de uma doença que já fez mais de 1,7 milhão de vítimas em todo o mundo.

Nesse sentido, a crise na saúde requer bem mais do que o distanciamento social recomendado pelas autoridades sanitárias. O ano atípico de 2020 exige reflexões, disposição para mudanças e — por que não? — fé para começar 2021. Para o arcebispo de Brasília, Dom Paulo Cezar Costa, a pandemia trouxe a necessidade de uma profunda reflexão sobre a vida em comunidade, o que passa por pensar na fé, na relação com as pessoas e nas injustiças sociais.

Nesse momento de crise, destaca o religioso, as pessoas são chamadas a reaprender a viver. Essa deve ser a grande lição, segundo ele: olhar os outros e demais seres vivos com respeito, abandonar o individualismo, deixar para trás o “eu” e construir o “nós”, pois o sagrado está na união e na empatia.

A covid-19 afeta todas as partes do mundo, criando medo, ansiedade, tristeza e dificuldades. Como o senhor avalia a pandemia que vivemos? Como a Igreja Católica observa esse fenômeno?

A humanidade vive muitas crises e vai viver outras ainda. Faz parte da história, é natural. Essa pandemia trouxe uma grande crise na saúde, (no meio) social e nas instituições. Ela desmascarou nossa fragilidade, destruiu nossas falsas seguranças, nossos projetos, afetou nossos hábitos e nos colocou diante da provisoriedade. Nós todos nos sentimos, de uma forma ou de outra, em um mar agitado. Mas a crise também é sempre um tempo de possibilidades e de empenho nosso na busca por superação. Vejo a crise como um momento difícil para as pessoas e para a sociedade, mas, também, como um tempo de possibilidade.

O ano de 2020 foi atípico. Como os católicos foram chamados a viver esse período?

Nós, católicos, vivemos um tempo com esperança, porque temos certeza de que o barco que está no mar agitado não afundará. Não estamos sozinhos nesse barco. O Senhor permanece conosco, como naquela imagem do Evangelho em que o mar está agitado, Jesus está dormindo, os discípulos estão desesperados e gritam “Não se importa, Senhor?”. Mas Jesus se levanta, diz ao vento para que se acalme, e a tempestade cessa. Esta é a certeza que o cristão tem de ter: que Jesus está na barca conosco e, estando na barca, ele (o cristão) não perecerá.

O senhor acha que, de alguma forma, esse tempo de pandemia também foi um recado, um alerta, para a humanidade?

Acredito que sim. Esse momento quis dizer tantas coisas, mas, principalmente, que devemos aprender a ter solidariedade e resiliência. De certa forma, as pessoas se sentiram mais humanas. Sentiram que todos estamos participando da mesma condição e que todos fomos afetados pela pandemia e pela crise. Penso que, dessa crise, deve sair uma sociedade mais solidária e fraterna, onde homens e mulheres sejam verdadeiramente irmãos. Um dia desses, participei de um evento, na embaixada do Barein, em que o rei (do país) escreveu uma bonita carta sobre a importância da convivência entre as diferentes religiões. O papa Francisco escreveu, recentemente, a encíclica Fratelli tutti, sobre a fraternidade. E tudo isso aconteceu durante a pandemia, o que mostra que somos todos irmãos. Existem religiões diferentes, formas de pensar diferentes, mas somos todos irmãos. A pandemia mostrou que é preciso pensar a sociedade de uma forma diferente, não com rivais, mas com aliados, especialmente em momento de pandemia.

Estamos passando por uma crise de saúde mundial, como a fé pode ajudar a atravessar esse momento?

A fé é fundamental. Ela nos ancora no mistério eterno do amor de Deus e nos dá a certeza de que uma presença maior caminha conosco. Ela nos ensina que a história não é só uma sucessão de fatos, mas que a história e a vida humana têm um significado mais profundo. A fé faz iluminar todas essas realidades e nos assiste, lembrando-nos de que, nas noites escuras, como nesse momento de crise, há uma presença maior que caminha conosco. Ela nos ajuda a olhar os acontecimentos com esperança.

Será possível superar os traumas que a pandemia deixou? O que podemos fazer para não nos desesperarmos neste momento, especialmente quem perdeu pessoas queridas?

Precisamos buscar meios para a superação dos problemas, seja pela fé, pela psicologia ou pelas outras ciências, que podem nos ajudar neste momento. Aos que perderam os entes queridos, a maioria não teve nem condição de viver o luto, e o luto é uma condição importante da vida humana. Esse tempo de pandemia nos impediu disso. É preciso, nesse caso, usar a criatividade para vivenciar o luto, mesmo que esses entes queridos tenham sido sepultados.

Outra realidade desta pandemia foi o isolamento social. O que podemos aprender com o distanciamento? Como vivenciar a fé em meio a uma crise que distancia as pessoas?

O distanciamento social é uma realidade. O isolamento nos fez conviver com as pessoas que amamos e que estão perto de nós. Mas, ao mesmo tempo, colocou-nos juntos, e as crises também apareceram. Vieram à tona na mesma medida em que os laços familiares se fortificaram. O isolamento social nos relembrou de que a vida não é só fazer, construir e produzir, mas também de que as relações humanas são fundamentais.

No início da pandemia, os templos ficaram fechados, mas continuaram com atividades ou celebrações on-line. Como a pandemia ressignificou a relação entre os fiéis e a igreja?

As crises sempre adiantam processos que estão latentes. Isso também aconteceu no relacionamento dos fiéis com a igreja. Felizmente, eles responderam e estão respondendo a essa nova forma de participação. Muitos continuaram a contribuir, trazer donativos para os pobres, participar da vida das paróquias, mas (tudo) de uma forma diferente. Esse tempo de pandemia apenas adiantou um processo de uso das mídias sociais na evangelização, na missão e no levar Deus para a vida das pessoas.

A ciência tem sofrido ataques por parte de alguns líderes mundiais. O senhor acha que a pandemia radicalizou a questão da ciência versus a fé? Como elas podem se equilibrar?

A ciência é fundamental na vida da sociedade. A Igreja Católica tem seguido as recomendações da ciência. Se temos uma vacina às portas, se a humanidade está começando a ver o sol, (isso) é fruto do esforço e do trabalho de tantos cientistas. Em algum tempo da história, houve esse conflito, mas, hoje, essa oposição não existe. Ao contrário: o que há é um profundo respeito e diálogo. É preciso que haja o justo respeito, (pois) a sociedade não pode viver sem a ciência e precisa dos cientistas. Ela (a ciência) é o que nos faz ver o sol novamente.

O senhor acredita que vai ser possível colher frutos quando tudo isso passar?

Penso que sim. O tempo de crise é sempre um tempo de possibilidades, em que o novo se manifesta e deve emergir. Muitos frutos virão. Frutos de solidariedade, de uma maior irmandade entre as pessoas e de um humanismo maior, (situação) em que as pessoas estejam mais atentas umas às outras. A sociedade, a partir dessa grande crise, é chamada a caminhos novos, que levem em conta a percepção de que somos todos irmãos, que estamos no mesmo barco e que participamos da mesma raça humana. Penso que surgirá, também, uma sociedade em que as pessoas deem mais atenção à nossa afetividade. Ficamos tanto tempo sem abraçar. Acredito que, disso, surgirá uma convivência mais afetiva entre as pessoas. Um oposto deve conduzir ao outro. O distanciamento deve nos levar a uma capacidade maior de expressar nossos sentimentos e afetos.

Quais serão os maiores desafios de 2021 nesse sentido?

Em 2021, a gente tem, ao menos, a perspectiva da vacina. Então, a sociedade vai começar a voltar ao novo normal. Espero que estejamos unidos para enfrentar esse tempo de crise e pós-crise. As condições para vivermos esse tempo, em que tivemos o tecido social desgastado, é estarmos mais unidos, cada um dando a própria contribuição. Que se vençam as polarizações e que olhemos pelo bem dos mais pobres e mais vulneráveis. Aos que têm fé e, por isso, vivem de esperança, que tenham essa certeza de que não estamos sozinhos. O princípio da vida é mais forte do que o princípio da morte. A vida vencerá. Devemos ter uma grande esperança em 2021. E, como seres humanos, empenhar-nos em construir soluções para que a sociedade vença essa crise e caminhe no pós-crise.

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