ENTREVISTA

"Ainda estamos distantes da igualdade de gênero", diz promotora Mariana Távora

Ao CB.Poder, ela declarou que a Justiça precisa avançar em proteção às mulheres. Távora também destacou a necessidade de reforçar o pacto social, o coletivo, para enfrentar a violência doméstica. "É você se importar com o outro, ter essa dimensão"

Luana Patriolino
postado em 30/12/2020 06:00 / atualizado em 30/12/2020 13:45
 (crédito:  Ana Rayssa/CB/D.A Press)
(crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)

Desde a criação da Lei do Feminicídio, em 9 de março de 2015, a Polícia Civil do Distrito Federal solucionou 96,2% dos crimes, com a identificação dos suspeitos. Apesar do bom resultado — comparado a outras unidades da Federação — o DF ainda tem muito que avançar em políticas públicas de proteção e acolhimento das mulheres. É o que avalia a coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT), Mariana Távora, em entrevista ao CB.Poder — parceria do Correio com a TV Brasília. Távora comentou sobre a necessidade de acabar com a desigualdade de gênero e, também, sobre a objetificação da mulher na sociedade. A coordenadora destacou o padrão das vítimas de violência no DF, que em maioria são negras, trabalham em serviços precários e vivem um ciclo de violência.

Apesar de todas as medidas protetivas que já existem em lei, por que o feminicídio é tão frequente no Brasil, como aconteceu com a juíza do Rio de Janeiro, assassinada às vésperas do Natal?

Primeiro, eu queria falar sobre a simbologia desse caso. O que ele traz de reflexão para nós, enquanto sociedade? É uma mulher que ocupa um espaço de poder, e isso vem nos dizer o quanto nós pensamos que as mulheres avançaram, que elas ocupam casos importantes, como juízas, promotoras, por exemplo. Isso mostra que ainda estamos distantes de uma igualdade de gênero. Temos uma mulher com um bom emprego, um bom salário e, ainda assim, é vítima de violência doméstica. Isso mostra que estamos muito distante da igualdade de gênero. Se olharmos para os números, vamos ver que nós, mulheres, ainda ocupamos, mesmo que nesses espaços, poucos cargos de decisão. Então, é importante falar sobre representatividade, sobre essas mulheres estarem em espaços de decisão, para que possamos reverter a situação, a partir das nossas experiências, do nosso lugar de fala, e levar algumas políticas que representem igualdade entre as mulheres.

Isso significa que a violência é o ponto extremo da desigualdade de gênero?

O feminicídio é o cume. Ele vai representar toda essa lógica da nossa sociedade que coloca a mulher como um objeto. Eu estava pensando na expressão “conquista” que usamos. “Ah, eu vou conquistar aquela mulher”. Se formos para a etimologia da palavra, o que significa conquista? “Conquista” é subjugar. Em nosso linguajar, nosso cotidiano, estamos ainda muito dentro de uma lógica de olhar para a mulher dentro de um espaço, como um corpo, como um território. Nós temos um alto índice de feminicídios — e que tem crescido. Se olharmos os nossos números de violência sexual que estão correlacionados a isso, também podemos ver como o corpo da mulher ainda é um espaço de território, conquista e subjugação, em que as pessoas veem como seu, de propriedade. Temos muito o que avançar.

Existe um ponto que é bastante delicado. Estamos lidando muito com a vida privada das pessoas. Como o Estado pode agir em uma situação como essas?

Nós temos que lembrar que esse é um problema social e precisa ser enfrentado pelo Estado como tal. Vamos precisar de várias políticas que vão entrar em diversos eixos e fazer essa prevenção. Eu diria que temos avançado ao longo dos anos, mas no que diz respeito à repressão e ao aparato do Estado que vai reprimir. Posso dizer que, no DF, temos tido uma boa resposta penal. Índices bons de condenação, penas altas. Mas, por outro lado, temos de pensar que, para uma prevenção ser ideal, é preciso atuar na repressão antes e depois da prática desse crime.

De que forma?

Trabalhar com educação para a igualdade de gênero e no que diz respeito à identificação do risco. Tem uma pesquisa que fizemos no Núcleo de Gênero, recente, que observamos que um percentual grande de mulheres que foram mortas não reportou, antes, a violência. Nesses casos, havia um ciclo, mas que não tinha sido reportado ao sistema de Justiça. Precisamos pensar em como identificar essas mulheres que estão sofrendo violência, que estão em silêncio e que precisam de algum tipo de apoio. Pensar nessas portas de entrada, que não são só o sistema de Justiça. A saúde, por exemplo.

Um vizinho também pode saber o que está acontecendo na casa ao lado…

Sim. Reforçar esse pacto social, essa importância do coletivo. É você se importar com o outro, ter essa dimensão. E isso nós podemos produzir nas escolas e, também, em centros de referência de atenção à mulher. Podem ser espaços onde ela vá lá conversar sobre a sua situação e tentar, ali, se fortalecer para poder, enfim, pressionar o sistema de proteção.

Você estava comentando sobre essa questão social. Também está muito arraigado na sociedade, no sentido de que aquele velho ditado “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Como resolver isso? Essa mentalidade acaba sempre favorecendo o agressor em prejuízo da vítima?

É despertando esse senso de coletivo. Entendendo que o machismo é um problema de todos nós. Somos educados e criados em uma lógica de pensar na mulher como território, espaço a ser ocupado. Precisamos reformular isso. A imprensa tem o seu papel fundamental e responsabilidade social de trazer, aqui, especialistas, promotores, professores universitários. Divulgar pesquisas. Levar esse tema de forma responsável para dentro das escolas. Pensando em trazer esse tema da desigualdade de gênero para dentro de cada ciclo escolar e trabalhando de forma transversal em todas as matérias. Isso vai fazendo com os valores sejam transformados.

Diria que do ponto de vista de um sistema judicial, o Brasil ocupa uma boa posição com resultados, e o que falta, então, é um trabalho da sociedade?

O sistema de Justiça ainda tem muito a caminhar. No DF, percebemos que existe um índice alto de condenação, uma boa resposta do Estado. Mas temos muito a caminhar. Por exemplo, no que diz respeito ao apoio às vítimas secundárias do feminicídio: as crianças. Nós não temos políticas estruturadas nesse tipo de apoio. Precisa avançar no que diz respeito aos outros crimes de violência que, muitas vezes, fazem parte do ciclo. O sistema de Justiça precisa muito de um avanço, de trabalhar numa perspectiva de gênero.

O Núcleo praticamente concluiu uma pesquisa sobre feminicídio no DF. Quais são os dados que chamam mais atenção?

Podemos dizer que grande parte das vítimas do Distrito Federal são mulheres negras, e isso nos faz refletir que precisamos pensar em políticas de igualdade racial aqui. Elas também não reportaram ao sistema de Justiça. E grande parte dos conflitos ainda está relacionada à posse dessa mulher. Há um sentimento dessa mulher como posse do homem. É necessário pensar em políticas para trabalhar a desconstrução de uma masculinidade hegemônica ou, no jargão mais popular, uma masculinidade tóxica.

Também existe um corte na pesquisa em relação à profissão, certo?

A pesquisa tem um recorte temporal 2016/2017. A maior parte das vítimas tem profissões relacionadas ao cuidado. São mulheres que estão trabalhando em casas, em empregos mais precários. A precariedade é um fator de risco. Como, por exemplo, o isolamento, a falta de rede de apoio. Tudo isso é um fator de risco. A pandemia fomenta esse isolamento. Temos visto um aumento dos feminicídios no Brasil. Em Brasília, vemos uma situação um pouco adversa. Tivemos queda no aumento no segundo semestre. Mas, com a quebra desse isolamento, os feminicídios subiram.

Para mostrar como é um fenômeno disseminado, não só brasileiro, inclusive, existe uma ação para ajudar as mulheres imigrantes no Distrito Federal. Como é essa ação?

A questão da imigração é um fenômeno mundial. O DF tem recebido haitianas, venezuelanas e chinesas. A língua é uma barreira. Se o silêncio pode velar um feminicídio, imagine esse silêncio associado à barreira linguística? É um dificultador para acessar a rede de proteção. A ideia, com a cartilha, foi disponibilizar o que é a rede de proteção e quais são as nossas leis. Está traduzida para o inglês, espanhol, francês e chinês. A ideia é que avance, seja traduzida para outras línguas e tenha um formato oral também, para as pessoas que não sabem ler ou que têm dificuldade. Acessar um público ainda maior e vencer essa barreira que é a língua. Vencer o silêncio e fazer com que a rede de proteção possa intervir.

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