O ano de 2020 trouxe inúmeras experiências. Para diferentes povos, teve vários sentidos. Para cada indivíduo, uma provação particular. Os últimos 365 dias ressignificaram a vida de milhares — brasileiros ou não. E, para a maioria, foi necessário seguir uma regra: deixar para trás. Esquecer. Porém, entre o tanto que merece ser preterido, é fácil se perder em uma das poucas coisas que, de fato, devem ser levadas para 2021 — e para sempre: ensinamentos, lições, aprendizados.
Nesse sentido, as religiões podem ser uma importante ferramenta para entender melhor o que se absorveu ao longo do ano — a depender de cada doutrina — e, especialmente, como se apoderar dessas lições, para usá-las em tempos futuros. Para entender um pouco a perspectiva do espiritismo, sistematizado por Allan Kardec, o Correio conversou com Paulo Maia, 52 anos, presidente da Federação Espírita do Distrito Federal (FEDF) há quase oito anos.
Paulo explica que, entre as premissas dessa religião está a compreensão de que ela é pautada pelo voluntariado, pela ligação com os espíritos e pelo entendimento da reencarnação. “Na essência, a proposta é vivenciar o cristianismo na origem. Não existe hierarquia, cargo, profissionalismo. É uma vivência voluntária, de conexão interna. O Deus é único”, afirma. “Cristianismo e espiritismo são uma coisa parecida. Mas acreditamos em comunicação com os que partiram e na reencarnação, na justiça divina. O que o difere, talvez, das outras religiões é isso”, compara.
O presidente da FEDF acrescenta que as práticas do espiritismo existem há tanto tempo quanto as de outras religiões. No entanto, a sistematização proposta pelo trabalho de Allan Kardec, no século 19, torna a doutrina não apenas religiosa, mas de cunho filosófico-científico. O trabalho dele, especialmente n’O livro dos espíritos, demonstra essa proposta. A obra literária não substitui a Bíblia para os seguidores, mas age em paralelo a ela.
As mudanças
Ao ser questionado sobre os principais aprendizados de 2020 que podem ser levados para 2021, na perspectiva do espiritismo, Paulo resume: empatia, resiliência e metanoia. “Principalmente essas três coisas. A empatia, para se colocar no lugar do outro, entender que existem outras pessoas sofrendo e precisando de ajuda. A questão da resiliência é porque todos passamos por um momento difícil, e essa capacidade de se voltar, de ter flexibilidade e seguir em frente é algo muito urgente para este momento. Por fim, eu citaria a metanoia, que é uma metamorfose interna, uma renovação íntima”, avalia Paulo.
“No interior de cada um, existe quase uma impotência. Seja em relação ao vírus, à política ou ao mundo exterior, de forma mais ampla. A maioria dos indivíduos não têm o poder de ação que talvez desejasse com relação a tantos fatos externos, e saber identificar isso, entender e lidar é um processo de renovação interior, que é fundamental para se relacionar com isso tudo”, completa o presidente da federação.
Com base na doutrina espírita, Paulo Maia também faz um balanço de 2020. Para ele, as profundas mudanças podem trazer transformações positivas no fim do processo. “Entendemos que foi um ano de muita provação para a humanidade e que isso pode ser visto como um momento de transição para os seres humanos. Naturalmente, existiram várias dúvidas em relação à vida e ao que estamos passando. Mas, em nossa perspectiva, é uma lei de evolução da humanidade. As grandes transformações nem sempre vêm de forma simples, mas de um contexto de mudanças”, explica o religioso
Em fases como esta, muitas pessoas tentam ser menos egoístas e focar no coletivo, segundo Paulo. “São momentos em que podemos repensar nossos conceitos, senão, a humanidade pode ser eliminada. Essa dificuldade pode renovar o homem. Nós vimos (países que eram) inimigos históricos, inimigos de guerra, que se uniram por uma solução, por uma vacina. Existiu uma ação pelo bem comum, pelo bem do outro”, observa.
Outro ponto que 2020 mudou na percepção dos indivíduos tem a ver com a questão das relações fraternas. “Esse recolhimento no lar, que muitas pessoas podem ver como reclusão, fez a gente olhar mais para a família e encontrar o básico, de certa forma. Isso pode ser bom”, acredita.
A morte
Um dos principais temas para várias religiões, a morte teve destaque neste ano. A doutrina espírita, contudo, vê uma continuação nesse processo. “Para nós, a vida é voltada ao espírito, não ao corpo. Uma coisa muito importante é que as pessoas saibam que a morte não é o fim e que o amor não se acaba depois dela. Se eu perdi um filho ou alguém querido, o sentimento de amor por essa pessoa não acaba, e ele continua vivo em algum lugar. E um dia vamos nos reencontrar. A morte é um processo natural, não é um fim para todos. O fato de não podermos nos ver, comunicar ou viver o cotidiano com eles não significa que não existam mais”, pontua Paulo.
Em relação à morte no contexto da pandemia, o religioso menciona a vertente da transição: “Sob a perspectiva de quem não tem uma religião ou de quem não consegue uma resposta sobre o assunto, é fácil procurar um ‘culpado’ para lidar com os estágios do luto — desde a negação, passando pela revolta, até a aceitação. Mas, na pandemia, o inimigo é oculto. Não tem um rosto, não tem um endereço. Acho que a morte ensinou a lidar com a vida em um sentido maior. A maioria das religiões defende algo além da morte, mas a maioria das pessoas não entende essa perspectiva de que (ela) é uma transição; e a pandemia, uma forma de olhar para um plano maior das coisas”, comenta o religioso.
Entre tantos sentimentos negativos associados a 2020 e como uma forma de explicar como o espiritismo aborda a expectativa de tempos melhores, Paulo faz referência ao trecho João 16:33, da Bíblia: “No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo; eu venci o mundo”. “Acho que isso significa que não devemos viver em um cenário desesperador. Deus ensinou uma mensagem muito necessária: não perder essa referência de que, embora as dificuldades existam e que pareçam não ter fim, um Deus justo e bom está governando e cuidado de tudo”, conclui Paulo Maia.
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