Passamos para a 6ª série
Nunca entendi muito a adoração, tão comum, por rituais. Sempre me pareceu um exagero, uma crença irreal de que, só porque você fez alguma coisa, como colocar um anel no dedo, vestir uma roupa esquisita ou fazer um juramento, você se tornará uma pessoa diferente e — esta costuma ser a intenção — melhor. Mas também não ignoro o prazer ou a sensação de plenitude, sei lá, que os rituais podem proporcionar. O brilho no olhar dos noivos, o sorriso largo no rosto dos formandos, a sensação de paz após alguma celebração religiosa... Tudo isso é real, eu sei.
Como não acredito no poder mágico, mas curto a sensação, me acostumei a dividir os rituais entre os que valem a pena e os que não. Dar presente de aniversário para amigos, almoçar com minha mãe no Natal e no dia do meu aniversário (e não é só porque tem pudim de leite) e até fazer discursos em momentos importantes são coisas que adoro. Mas de outros eventos, como casamento de quem não sou muito íntimo, fujo como o ódio foge da alegria.
Nessa balança de vale ou não vale a pena, a passagem de ano-novo sempre ficou em uma zona cinzenta. Como não acredito que a mudança de calendário — e toda a enxurrada de simpatias que podemos realizar — vá mudar algo, acabo fingindo empolgação e forço um sorriso maior que o que daria espontaneamente. Mas ver o calendário voltando para 1º de janeiro e o número do ano mudando, de alguma forma, acaba mexendo comigo. Meu ceticismo fica abalado e, por um breve momento, vislumbro como seria a vida se colocasse em prática todas as mudanças que vivo ensaiando mentalmente. E é isso que me faz desejar, com sinceridade, a mim e a quem eu amo, um feliz ano-novo, por mais fantasiosa que seja a ideia de um ano inteirinho feliz.
Este último dia 1º, no entanto, começou mais sem graça que de costume. Foi mais ou menos como passar da 5ª para a 6ª série na escola. Entrar em 2021, para mim, foi como passar para a 6ª série (ou 7º ano, para os leitores novinhos), aquela etapa em graça do primeiro grau (ensino fundamental, para os pirralhos), sem a importância da 5ª, que era quando a gente começava a ter um bando de professores, ou da 8ª, quando a gente estava às portas do segundo grau (ensino médio, para a molecada do Tik Tok).
Enquanto essa pandemia não acabar, 2021 vai parecer a continuação de 2020. E, aqui, não sei quando começaremos a vislumbrar a mudança. Vizinhos nossos, que já começaram a vacinação contra esse vírus maldito, aposto, devem ter encarado a passagem de ano como a entrada na universidade. Mas a gente está assim, esperando e só olhando, em silêncio, outros países iniciando a proteção de seus idosos, os mais vulneráveis a essa doença que surgiu em 2019, conseguiu estragar nosso 2020 e deixou esse começo de 2021 tão insosso.
Que este ano se recupere do começo fraco e termine como aquele em que vencemos o coronavírus. Mas, para que isso ocorra, é preciso que aqueles que nos governem passem a agir como aqueles que nos governam. Trabalhem, senhores. Tenham vergonha na cara. Assim como a mudança pessoal vem do esforço diário, e não da simpatia feita na noite de réveillon, uma pandemia não se vence com negacionismo, mas com planejamento, competência e ação. O povo brasileiro merece um 2021 ao menos melhor que 2020. E vocês devem isso a ele.
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