RELIGIÃO

Religiosos pedem empatia entre instituições e fim da intolerância

Após 14 anos da instituição do Dia Nacional de Combate à Intolerância, religiosos ainda lutam pela empatia entre instituições e pelo fim das agressões entre adeptos de diferentes expressões de diálogo com o sagrado

Ana Maria da Silva
postado em 18/01/2021 06:00
 (crédito: Carlos Moura/CB/D.A Press - 2/8/16)
(crédito: Carlos Moura/CB/D.A Press - 2/8/16)

Há 20 anos, a ialorixá Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, faleceu em decorrência de um ataque motivado por intolerância religiosa. O atentado teve como alvo o terreiro de candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, localizado nas imediações da Lagoa do Abaeté, em Salvador (BA). Dois meses depois, a idosa de 65 anos teve um ataque cardíaco fulminante e faleceu em 21 de janeiro. Em homenagem a ela, a data foi instituída como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 2007. Mais de uma década depois, os ataques que atingiram Mãe Gilda ainda fazem parte da realidade dos praticantes de diferentes religiões de matrizes africanas.

Desconhecimento

Adepto da umbanda, o professor de história e babalorixá do Ilê Asè Omo Odé Láíláí, Vagner de Jesus Santos, 39 anos, diz que a intolerância religiosa com adeptos de religiões de matrizes africanas é diário. “O problema é que a intolerância é como o racismo estrutural. Está enraizado na sociedade. É tão sutil que, às vezes, nem percebemos, mas se tivermos um olhar mais atento, uma visão mais concisa daquilo que você é e representa, talvez, nem perceba que está sofrendo intolerância religiosa”, diz.

Umbandista Vagner de Jesus Santos : "A intolerância é como o racismo estrutural"
Umbandista Vagner de Jesus Santos : "A intolerância é como o racismo estrutural" (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Da sutileza de um olhar, surge o preconceito, conforme explica o babalorixá. “Quando olham pra você de branco, recriminam, desviam o olhar, sem nem precisar abrir a boca. Há pessoas que te veem com algum adereço da sua religião e vêm falar com você querendo te converter, te salvar ou, simplesmente, te mostrar como prêmio”, lamenta Vagner. “As pessoas que me abordam não vêm com o intuito de me ensinar algo da religião, mas, sim, de mostrar para comunidade religiosa que conseguiram salvar alguém, como se eu precisasse ser salvo”, explica.

Para Vagner, o maior incentivador da intolerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas é a falta de conhecimento, em grande parte, dos líderes religiosos. “Por não terem conhecimento, acabam reproduzindo um discurso de ódio baseado em achismos”, acredita. A informação e o conhecimento são as melhores ferramentas para o combate dessa desinformação. “Quanto mais tivermos a oportunidade de falar sobre o assunto, de tornar essa discussão algo comum, factual, quanto mais pudermos expressar todo esse sofrimento que passamos diariamente, mais conseguiremos fazer com que as pessoas tenham interesse em saber do que se trata”, ressalta o professor.

Reparação

A intolerância religiosa contra judeus é conhecida como antissemitismo, conforme explica a diretora voluntária da Associação Cultural Israelita de Brasília (ACIB), Kelita Cohen, 43. “O antissemitismo tem características muito particulares. Ele se sustenta principalmente em estereótipos e preconceitos que, mesmo sem sustentação fática, vai se perpetuando em diferentes culturas e produzindo seus efeitos maléficos, que vão desde discurso de ódio até hostilidade e violência física e patrimonial”, explica.

Para a judia Kelita Cohen, o preconceito desumaniza e impede o relacionamento genuíno
Para a judia Kelita Cohen, o preconceito desumaniza e impede o relacionamento genuíno (foto: Minervino Júnior/CB/D.A Press)

Para a judia, boa parte do preconceito, pelo qual os adeptos do judaísmo vivenciam no Brasil, tem viés “positivo”. “Essa visão é, por vezes, preconceituosa, no sentido de ser um conceito formado, a priori, por exemplo, de que todo judeu é rico, todo judeu é um gênio, todo judeu é próspero” diz Kelita. “Mas, mesmo o preconceito que aqui eu chamei de positivo, acaba por reforçar preconceitos negativos — de ser avarento e calculista, por exemplo —, além de, indiretamente, criar uma barreira entre as pessoas, retirando do judeu a possibilidade de uma relação horizontal com pessoas não judias”, lamenta a diretora.

“Não posso deixar de mencionar a máxima expressão de intolerância pela qual o povo judeu passou em tempos recentes, levando aos campos de concentração e extermínio seis milhões de pessoas definidas pelo regime nazista como judias — homens, mulheres, crianças e idosos”, recorda.

Apesar dos registros fotográficos, fílmicos, documentais e testemunhais dos sobreviventes, Kelita diz que o evento ainda é, recorrentemente, negado como fato histórico. “Essa manifestação de intolerância e desumanização de certos grupos humanos é muito preocupante, porque impede e coíbe ações de reparação, de esclarecimento e de possibilidade de se estabelecer relacionamentos genuínos entre as pessoas”, ressalta.

Amar(elos)

“No Brasil, não há intolerância, há ignorância, defende o monge Sato Ademar Kyotoshi, 78, regente do Templo Shin Budista de Brasília. De acordo com ele, o budismo, ainda hoje, se expande pelos países ocidentais, nos Estados Unidos, na Europa, na Oceania e até na África. “Em todo lugar que passou aculturou-se, isto é, aceitou a universalização de valores humanistas e a customização respeitosa das tradições locais, mantendo o princípio da não violência, paz individual e social, bem-estar emocional e espiritual”, diz.

O monge lembra da experiência que viveu. “Quando tinha sete anos, os meninos vizinhos corriam atrás de mim, com pau na mão, tacando pedra e xingando: ‘Japinha, vá embora para sua terra, o Japão perdeu a guerra!’ Era o final da Segunda Grande Guerra, em que a pretensão imperialista e direitista do Eixo Alemanha, Itália e Japão saiu derrotada pela Aliança dos países liberais e democráticos, Brasil a seu favor, felizmente”, recorda. “Essa perseguição da intolerância discriminatória contra os amarelos continuou durante o tempo da minha infância, mas foi se amainando com a dissolução da ignorância”, explica o budista.

Para combater a intolerância, é preciso esclarecimento, defende o monge. “É se esclarecer, saindo das trevas da ignorância, aceitar a luz do sol, da lua, das estrelas e das pessoas amigas e de bom senso”, ressalta. “Como diz Emicida, na sua música Amarelo: amando os elos entre todos nós, até porque amarelo é a composição de todas as cores”, completa Ademar.

Incompreensão

O presidente da Comunhão Espírita, Adilson Mariz de Moraes, 55, conta que, como educador dentro da evangelização espírita de alunos entre 11 e 17 anos, ouviu diferentes situações de intolerância. “Todos eles, lamentavelmente, relataram nas escolas em que frequentavam, uma percepção de contrariedade por ser espírita. Essa falta de compreensão do outro lado. A maioria, infelizmente, passou por isso em escolas particulares”, explica.

Adilson Mariz de Moraes, espírita, entende que as parcialidades levam à ignorância e ao extremismo
Adilson Mariz de Moraes, espírita, entende que as parcialidades levam à ignorância e ao extremismo (foto: Arquivo Pessoal)

Para Adilson, as parcialidades levam ao extremismo. “Quando você assume apenas o seu ponto de vista, seja de religião ou qualquer outro, sem entender o lado do outro, está fadado a tomar um posicionamento parcial. E essas parcialidades é que levam à ignorância, ao extremismo. Quando a gente tem amor ao próximo, procuramos entender o outro lado”, acredita o espírita.

Como presidente, Adilson defende a importância do conhecimento como instrumento de combate à intolerância. “A doutrina espírita foca na filosofia, na ciência e na religião. Então, para que se torne espírita, é preciso estudar. Diante disso, temos que buscar o esclarecimento, que se dá pelas mídias sociais. As grandes casas espíritas têm investido muito na divulgação deste conhecimento”, conta. “A gente combate o preconceito pela informação, pela morosidade. É isso que temos que fazer”, acredita.

Contextualização histórica

A celebração dessa data é um convite às religiões do mundo todo para uma convivência pacífica e fraterna, um incentivo para uma reflexão sobre a situação das nossas tradições e crenças e o quanto podemos colaborar para um mundo melhor. Para o professor de filosofia da religião da Universidade de Brasília (UnB) Agnaldo Cuoco Portugal, a religião é uma realidade muito diversa, tanto do contexto atual quanto da história. “Há uma busca humana comum, que é manifestada de diferentes maneiras”, diz.

Segundo o especialista, por um longo período, a convivência entre as religiões esteve relacionada aos termos de contingência geográfica. “Ou seja, as religiões se estabeleciam em determinados territórios. Então, há regiões identificadas por povos, por exemplo”, diz. Historicamente, as religiões não tinham problemas, pois eram contidas territorialmente. “A dificuldade começa a surgir principalmente na modernidade, com as guerras provenientes de religiões. A partir daí, surge a associação entre política e religião. Os primeiros trabalhos sobre intolerância religiosa na filosofia são do século 17. A relação entre Estado e grupos religiosos que queriam ascender ao poder”, explica Agnaldo.

Atualmente, no Brasil, a intolerância não é proveniente do Estado, explica o especialista. “É muito mais uma visão da religião como mercadoria. Ou seja, tornou-se um negócio para certos grupos religiosos, e é algo que está sendo pensado em termos de domínio de mercado”, afirma. Segundo Agnaldo, certos grupos entendem que outros são ameaças a esses negócios ou são potenciais consumidores do seu produto. Essa é uma das maneiras de ver a questão da intolerância hoje, no Brasil”, reforça.

Para o professor, a solução para a intolerância religiosa exige atuação do Estado para proteção dos grupos que sofrem violência, além da apuração da responsabilidade daqueles que praticam o ato e a ampliação dos espaços de convivência, diálogo, aprendizado e educação. “Precisamos aumentar os espaços de convivência entre as lideranças religiosas e grupos. O ensino religioso pode ser uma possibilidade de melhorar essa convivência positiva, no sentido de ampliar o conhecimento do outro, para que, assim, todos possam respeitar e aprender”, finaliza Agnaldo.

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No Brasil, o direito à liberdade de religião ou crença está garantido no artigo 5º, VI, da Constituição Federal, que estabeleceu ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Além disso, constitui crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões, prevendo pena de reclusão de um a três anos, além de multa (Lei nº 7.716/1989).

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