HISTÓRIA

Relembre a passagem do pai de Kamala Harris pela UnB nos anos 1990

Pai da vice-presidente dos Estados Unidos, Donald Harris esteve no Distrito Federal nos anos 1990. Ele deixou sua marca em cursos na Universidade de Brasília e levou consigo as impressões da cidade

Jéssica Moura
postado em 21/01/2021 06:00
 (crédito: Universidade de Stanford/Divulgação)
(crédito: Universidade de Stanford/Divulgação)

A história de família da primeira mulher a ocupar a vice-presidência dos Estados Unidos carrega um pedacinho de Brasília. O motivo? O pai de Kamala Harris passou várias vezes pelo Brasil e pelo Distrito Federal. Quando aquele homem esguio, de óculos e roupa social entrou no auditório do departamento da Faculdade de Economia da Universidade de Brasília (UnB), em abril de 1997, houve um grande frisson entre os estudantes e professores que se reuniram para acompanhar seu seminário. Nas horas seguintes, eles ouviram Donald J. Harris discorrer sobre suas ideias consideradas heterodoxas sobre economia política e teoria econômica.

O convite para palestrar veio do então chefe do Departamento de Economia da UnB, Joanílio Teixeira. “Queria dinamizar a perspectiva de economia heterodoxa”, explica. Naquele período de início da internet, em que a conexão era precária e discada, e as ligações internacionais custavam pequenas fortunas, toda a comunicação entre os dois foi por e-mail. “Naquele tempo, ainda não era comum usar celular”, lembra Joanílio. Ainda que jovem, Harris tinha uma produção frutífera, era considerado um economista de corrente marxista, e seus textos integravam a bibliografia de cursos de graduação.

Ao desembarcar na capital federal, Donald Harris se surpreendeu com a geografia da cidade de avenidas largas. “Ele achou muito interessante que aqui, em Brasília, a gente ficava muito dependente de automóvel”, diz Teixeira, já que, em seu trabalho, Harris desenvolveu uma crítica em relação aos problemas da acumulação de capital e distribuição de renda. Também se espantou diante da organização da universidade pensada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. “Ele achou surpreendente encontrar uma universidade bem organizada em um país em desenvolvimento”.

Mas, a surpresa durou pouco e ele logo se misturou aos colegas economistas e também aos alunos, que apresentaram os costumes da comunidade universitária: às sextas-feiras, depois do pôr do sol, o grupo de intelectuais cruzava a L2 Norte rumo a algum dos restaurantes da Asa Norte para se refrescar com uma cerveja gelada após uma semana inteira de atividades acadêmicas.

Àquela altura, Donald e Shyamala Gopalan, mãe de suas duas filhas, Kamala e Maya, já estavam separados. Uma de suas obras mais célebres, Capital Accumulation and Income Distribution (1978), é dedicada às filhas. O processo do divórcio foi conturbado, e as garotas foram morar com a mãe. Uma das pretensões de Donald foi continuar a transmitir às filhas a herança jamaicana, e as levava para shows de Bob Marley quando passavam férias juntos nos Estados Unidos, onde vivia desde 1960, quando emigrou do país de origem.

Nos Estados Unidos, Harris cursou o doutorado e ficou internacionalmente conhecido pela pesquisa de abordagem neo-keynesiana, e por ser o primeiro homem negro a conquistar uma cátedra de economia na universidade americana de Standford, em 1972. “Quando fui para Standford, ele era o único negro do departamento. Mesmo no Brasil, no departamento de economia, era muito raro encontrar pessoas negras como professores. Ainda é difícil hoje, naquele tempo, você nem imagina”, pondera Teixeira. “Um economista heterodoxo, negro, em uma universidade conservadora, não é surpreendente?”, indaga.

Feijoada aos sábados

E foi com a ajuda desse título que ele desembarcou no Brasil para atuar como professor visitante em cursos nos departamentos de economia da UnB e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre 1990 e 1991. “Ele gostou muito da UnB, tanto que quis voltar”, assegura Teixeira, de quem ficou amigo. Ele foi bolsista pela Fundação Fullbright por dois anos e depois voltou ao país para ministrar seminários.

Em meio a esses debates, Harris acabou hospedado na casa de Joanílio Teixeira, no Lago Sul, onde ocupou o segundo andar do sobrado por quase dois meses. Além das discussões acadêmicas, Harris se agregou à vida familiar, mas, como ele não sabia nada de português, toda a comunicação era na língua inglesa, inclusive com os filhos e a esposa de Joanílio. A falta de traquejo com o idioma não o impediu de compreender com satisfação que, aos sábados, era dia de feijoada.

Depois de partir, Harris chegou a convidar docentes da UnB para uma temporada em Stanford, no Vale do Silício. Teixeira chegou à cidade como bolsista para desenvolver uma pesquisa de pós-doutorado e se encontrou com o amigo. Naquele tempo, Kamala Harris já era adulta e não estava mais com o pai, que morava sozinho. O divórcio foi concluído quando ela tinha sete anos. “Ele não cozinhou. Pediu uma pizza e ficamos jantando e batendo papo”, lembra o professor, que não conheceu a filha do amigo pessoalmente.

Discreto

Em 1990, Kamala cursava economia na universidade de Howard, no estado da Califórnia, seu reduto político. Após aquela visita, os dois amigos perderam o contato. Quando soube da candidatura de Kamala, os colegas da UnB chegaram a tentar retomar o contato, mas não conseguiram. “Foi difícil”, sentencia o professor. Mesmo na imprensa americana, Donald Harris é discreto ao comentar sobre a carreira política da filha. “Certamente, ele deve ter trocado ideia com ela sobre América Latina, Brasil e também Brasília”, diz Teixeira.

Há quase 30 anos, Donald Harris, hoje com 82 anos, não poderia imaginar que sua filha mais velha chegaria a um dos cargos mais importantes do mundo. “Quando Kamala ficou tão famosa, o pessoal da UnB ficou surpreso e contente por ele ter passado aqui e deixado essa marca. Alguns se lembravam com grande prazer da presença dele”, recorda Teixeira. Há dois meses, poucos poderiam crer que, após o governo do republicano Donald Trump, seria Kamala a primeira mulher, negra e descendente de indianos e jamaicanos, a compor o comando do país. E menos ainda que seu pai tivesse passado pela UnB.

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