Cena de palhaço
Gosto de circular de ônibus, você entra em contato com pessoas de várias classes, assiste a acontecimentos inesperados e ouve muitas histórias. Mas, antes da pandemia, eu havia desistido de ser usuário do transporte público. A minha família me proibiu de circular de ônibus por causa do crescimento da violência na Rodoviária do Plano Piloto. Realmente, aquela área se tornou muito perigosa.
Mesmo assim, colecionei muitas histórias e fiquei com vontade de relembrar uma que fosse divertida. Vamos a ela. Depois de terminado mais um dia de trabalho, tomei um ônibus na Rodoviária para retornar à minha casa, quando observei que um palhaço havia embarcado e iniciou um movimento. Admiro a coragem de quem se expõe desta maneira. Se não tiver talento, as pessoas podem não achar a menor graça e a comédia virar mico.
Todavia, eles botam fé na própria graça. Imaginei que ele fosse realizar algum espetáculo. Mas parece que tinha outros planos. Carregava um saco de pirulitos vermelhos em forma de coração e passou a distribuir o mimo para os passageiros em meio a gracejos: “Para ninguém sentir-se melindrado, vou presentear a todos”.
Algumas moças do fundão ensaiaram brincadeiras maliciosas com o pirulito: “Pode chupar?” O palhaço tirou de letra a provocação: “Olha, vocês fazem o que quiserem, mas eu não tenho nada a ver com isso. O palhaço leva a culpa de tudo. Muito cuidado. Depois, vão dizer que a culpa é do palhaço”.
Uma outra moça morena, sentada na parte da frente, virou-se na direção do palhaço para acompanhar o que acontecia no fundão. Ágil, ele entabulou uma conversa com a passageira: “Acho que você está me reconhecendo. Eu também te conheço de algum lugar. Ah, agora me lembrei!!! A gente se conhece da penitenciária, da Papuda”. A moça e os passageiros dobraram-se numa gargalhada.
O palhaço mambembe era educado e elegante, embora irreverente, com a verve engatilhada na ponta da língua. Se alguém fizesse uma brincadeira e não encontrasse receptividade, logo partia para outra, sem tornar-se inconveniente.
De repente, pediu um minuto de atenção e explicou que realizava um trabalho em hospitais para alegrar o cotidiano dos pacientes. Mas precisavam de grana para bancar as ações.
Com habilidade e leveza, transformava as situações mais constrangedoras em graça. Armado de senso de espetáculo, fez um discurso persuasivo para justificar a presença no ônibus: “Gente, quando entrei aqui, aposto que vocês pensaram assim: “Xi, lá vem mais um fazendo cena para, no fim, pedir dinheiro pra gente’. Pois vocês acertaram em cheio. Eu queria que vocês me ajudassem com o que pudessem. Aceito qualquer moeda e não tenho nenhum preconceito com dinheiro de papel”.
Era um legítimo artista popular, que não se embaraçava com nenhuma armadilha ou casca de banana colocada em seu caminho: “Tem um momento constrangedor nesta história: é a hora de recolher o dinheiro. Pois eu queria dizer a vocês que eu adoro esse instante. Se vocês soubessem como eu fico emocionado.”
Depois de amealhar as moedinhas em um saco e desanuviar o ambiente, o palhaço agradeceu, recomendou que todos fossem com Deus, desceu do ônibus e sumiu na escuridão da noite brasiliana.
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