HISTÓRIA DA CAPITAL

Artesã de 87 produz peças com fibras naturais do cerrado

Artesã premiada e reconhecida, Antônia Lopes, de 87 anos, produz peças decorativas com fibras naturais do cerrado. A técnica ajudou a pernambucana a se consolidar no Distrito Federal como expoente do artesanato

“Parece que tem olhos nos dedos”. Esse era o boato que corria na cidade de Correntes, em Pernambuco, onde morava Antônia Lopes, 87 anos, à época, ainda uma jovem, na casa dos 20. O espanto dos vizinhos se justificava: enquanto caminhava ou conversava com amigas, as mãos de Antônia não paravam de intercalar linha e agulha de crochê, e transformar os novelos em roupas. “Fazia de tudo: camiseta, gravata, meia de criança, blusa de manga e sem manga, de todo jeito”, conta a artesã.

O talento dela com o artesanato correu o país, e o trabalho foi reconhecido. Antônia acumula prêmios e certificados pela desenvoltura dos artefatos. Suas obras chegaram a integrar exposições de artesanato promovidas pela Secretaria de Turismo do Distrito Federal; a última delas, a Mostra Pioneiros, na Casa do Chá, que a consagrou mestre artesã. Ela é parte da comunidade de 10,5 mil artesãos registrados no DF. Apenas em 2019, o setor movimentou R$ 871,5 mil.

Mas é na casinha azul da artesã, que acumula quase 79 anos de carreira, onde estão várias de suas produções, espalhadas pelos cantos do lote. São flores, pétalas de rosas, figuras humanas e animais, trançadas com fibras naturais, oriundas do cerrado, como folhas de buriti, capim colonhão e canela-de-ema. A matéria-prima está ao alcance das mãos, ainda firmes, apesar da idade. “Uso todinha, da palha ao caule”, explica.

Foi com igual firmeza que Antônia trançou a trama da própria vida. A habilidade foi aprimorada ao longo dos anos. Para isso, começou ainda pequena, na fazenda em que vivia com a família em Garanhuns (PE). Aos 8 anos, Antônia observava o movimento que faziam as mãos da mãe para transformar os fios brutos em produtos novos e absorvia a técnica ancestral de tecer.

À época, já arriscava as primeiras das inúmeras peças que produziria ao longo da vida: eram bonecas e bichinhos, com os quais presenteava os irmãos. Se precisava de mais material, era só correr pela fazenda para apanhar sabugo de milho, palha de coqueiro ou maracujá do mato. O trançado que aprendeu criança virava diversão. “Na minha casa, nascia um menino todo ano, e eu ajudava a criar as crianças”. Ela teve 23 irmãos.

“Às vezes, perco o fio da memória. Você me desculpe, minha filha”, diz Antônia, ao contar sua história. Mas isso não é verdade: o relato lúcido da artesã une as pontas da infância às da idade adulta para organizar os retalhos de sua trajetória. Foi a habilidade do artesanato, adquirida ainda criança, que ajudou a pernambucana a se consolidar em Brasília como um dos expoentes no trançado com as fibras naturais.

Só que a princípio, a costura e o trançado não eram um fim, mas apenas um meio para que ela atingisse seu maior objetivo: “O que eu queria era ter uma casa para eu fazer minhas coisas do jeito que eu quisesse, sem que ninguém reclamasse”. Isso só aconteceu quando Antônia se casou com José Oliveira. “Quando o conheci, meu coração acelerou, mas o achei velho e feio. O noivado não foi longo. Com 53 dias que o conheci, estava casada e morando na minha casa”, lembra Antônia.

Depois do casamento, foi viver em Correntes (PE). Lá, ganhou a fama de boa bordadeira. No entanto, a vida era difícil e os recursos escassos. O marido decidiu que se mudariam dali em busca de melhores condições. “Juntamos todas as economias e fomos”, lembra. Na partida, José deu uma máquina de costura à Antônia, a primeira de sua vida. “Onde é que eu vou botar essa máquina, se não temos nem casa para morar?”, indagou a artesã. Ela estava apreensiva, não queria perder a liberdade conquistada. “Vamos ter (uma casa)”, prometeu José, e comprou uma pensão em Alagoas, que passaram a administrar.

Assim, a mulher, que estudou até a 4ª série, começou um curso de corte e costura. Ela precisou atar os nós da rotina puxada na pensão, cuidando dos inquilinos, com as aulas e a máquina de costura. Todos os dias, por quase um ano, durante 2h30, ela aprendia a dominar o aparelho e costurava o que estava na moda. “Naquele tempo, era mais saia longa, não existia calça comprida. Também bordava miçangas”, lembra. O ano era 1954.

Contudo, o pai de Antônia não estava satisfeito com a situação. “Ele escreveu para José, para que desistisse de cuidar da pensão e voltasse para Pernambuco, para negociar gado com ele. Aí, o dinheiro apareceu”, relata. Antônia já estava casada havia cinco anos quando nasceu o primeiro dos cinco filhos.

Peregrinação

Nos vinte anos seguintes, a família iniciou uma peregrinação. “Eu já morei em seis estados”. A penúltima mudança foi de Sergipe para Bahia. Antônia, o marido e os filhos subiram no caminhão e viajaram entre os gados. Ao se instalar na zona rural do estado, uma vizinha a alertou que, em Brasília, os artesãos tinham o trabalho valorizado. “Peguei meu filho e vim na frente”.

Ao desembarcar na capital federal com a criança, Antônia se instalou em um barraco de tábua, no Setor Leste do Gama. Ainda naqueles primeiros dias, sobre a caixa de correio, o carteiro deixou uma revista com imagens de bichos de pelúcia. “Já sabia o que fazer para ganhar a vida”. Para começar a produção, logo fez o registro de artesã junto ao governo local. “Comecei a vender na Torre de TV, onde fiquei três anos”, relata.

Reconhecimento

Ao deixar a feira de artesanato na Torre de TV, Antônia passou a vender suas peças ornamentais em feiras livres, onde também ensinava a arte para pessoas de todas as idades, desde crianças a idosos, e foi ficando conhecida pela qualidade dos produtos. “Um dia, um aluno de 80 anos trançou tanto que sangrou as mãos. Eu achava aquilo bonito. Pensava: meu Deus, será que também vou chegar a essa idade?”.

O tempo confirmou que ela iria ainda mais longe. De lá para cá, ela acumula prêmios e reconhecimento. “Eu sei que comecei criança, com 8 anos, mas não sei quando vou parar. Só não tenho perna boa para andar. O médico falou que eu, sentada, podia trabalhar a vida inteira”. Para isso, ela tem a ajuda da “secretária”. “Tenho uma bengala que chamo de secretária. Dou até banho de álcool nela”, brinca.

Agora, ela mora sozinha em uma casa no Gama. Como a maioria dos brasilienses, espera o fim da pandemia do novo coronavírus para retomar suas atividades. “Esse ano (2020) foi ruim para venda. Estou com o artesanato estocado para vender. Tenho um monte de estoque e também preciso sair de casa. Estou sem abraçar o povo”, lamenta.