Um tanto cansado de escrever reportagens sobre a pandemia ao longo de toda a semana, decidi que esta crônica seria a mais pura ficção. Não quero que, aqui, reste qualquer rastro de verdade. A ideia é que seja a mentira mais pura possível, sem qualquer contaminação. Para isso, comecei a imaginar situações impossíveis e inverossímeis, daquelas que ninguém, ninguém mesmo, jamais seria capaz de acreditar que são reais. Eis os não-fatos.
Minha história, claramente inventada, começa com um grupo de deputados federais. Eles se articulam para uma disputa pela presidência da Câmara. Com o apoio de um imaginário presidente da República de um hipotético país tropical, eles se desenrolam em acordos e negociatas que culminam na vitória de um candidato com um improvável passado duvidoso e um tanto nefasto.
Na minha história, claramente inventada, estamos no meio de uma pandemia e o hipotético país tropical contabilizava mais de 225 mil vidas perdidas quando o irreal novo presidente da Câmara dos Deputados foi eleito. Todos se assustaram porque ninguém esperava que o novo comandante fosse fazer um discurso enérgico em defesa de medidas para conter a inesperada pandemia. Isso porque o aliado dele, o hipotético presidente do país, fazia de tudo para fingir que nada estava acontecendo.
Surpresos, os repórteres, na minha história claramente inventada, escreveram matérias e editores manchetaram em todos os sites a fala sobre como conseguiríamos, com o apoio dos nobres e hipotéticos deputados, superar os traumas e as dores da pandemia. Também teve muito destaque nos periódicos o pedido de um momento de silêncio pelas mortes que ocorreram por causa da nova doença. Muitos ficaram emocionados.
Minha história, claramente inventada, precisava, como todas as histórias claramente inventadas, de um plot twist. Eis aqui um dos grandes: corta para uma mansão em uma das áreas mais nobres de uma imaginária capital planejada. Lá, mais de 300 pessoas, incluindo o hipotético novo presidente da Câmara e vários parlamentares, se esbaldam entre canções bregas e bebidas alcoólicas com preço exorbitante. Todos eles, pasmem, ignoram que a pandemia era causada por um vírus muito contagioso e que uma das únicas formas de evitar a disseminação era não promover aglomerações. Nenhum deles se lembrava naquele momento do minuto de silêncio feito horas antes em memória dos 225 mil mortos.
Também na minha história claramente inventada o país todo vê a situação com um pouco de raiva, mas não chega nem perto da indignação necessária e tudo isso, dias depois, cai no esquecimento. E assim termina a narrativa. Um amigo, ao ler esta crônica, me garantiu que acabei escrevendo uma reportagem — estranha, mas reportagem — e que tudo isso verdadeiramente aconteceu. Eu, cético que sou, continuo duvidando e acho até que preciso investir em ficções mais realistas. O papo do meu amigo, é claro, só pode ser fake news.
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