As mulheres foram excluídas da educação formal por muitas décadas, sob justificativas pseudobiológicas, relacionando o corpo feminino à menor capacidade intelectual e cognitiva. Até hoje, a maior carga de serviços domésticos e cuidados familiares deixa as mulheres em desvantagem no meio acadêmico, gerando disparidades não só no desenvolvimento de estudos e publicação de artigos, como também na representatividade entre pesquisadores, a qual é crucial para uma discussão mais complexa dos assuntos e diversidade dos temas escolhidos para estudo.
Com o objetivo de celebrar os feitos das mulheres na área, e encorajar gerações mais novas a buscarem carreira científica, a Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu o dia 11 de fevereiro como o Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência. A data é um marco para a promoção da igualdade de direitos entre homens e mulheres em todos os níveis do sistema educacional, sobretudo nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Stem).
A representatividade, muitas vezes, pode estar na gestão de um projeto. É o que defende a educadora Valéria de Oliveira, 55 anos, gerente do Reciclotech — projeto da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação, executado pela organização da sociedade civil Programando o Futuro. “Ser gerente desse projeto é uma oportunidade de promover ações afirmativas. Há valorização da diversidade na composição da equipe, das turmas, no material didático e no empoderamento por meio da geração de conhecimento, oportunidade e renda”, acredita.
Como gestora, Valéria diz que a desigualdade de gênero ainda é uma realidade na sociedade. “Ela se reflete na subrepresentação das mulheres em postos de comando e na diferença salarial, mesmo para o desenvolvimento de funções similares”, lamenta. “Na área de tecnologia não é diferente. Por isso, a equidade na oferta de vagas para a composição da equipe e das turmas dos cursos é muito importante para mudar essa realidade. O conteúdo pedagógico, também, deve abordar a igualdade de gênero”, defende a educadora.
Valéria explica que as dificuldades que enfrenta como gestora são comuns às mulheres. “Já sofri assédio no trabalho, enfrentei dupla jornada, dificuldade de acessar creches para meus filhos, e convivo diariamente com a tristeza de ver o número de feminicídios aumentar dia após dia”, diz. Para a gestora, o conhecimento e o trabalho são o caminho para a materialização dos direitos femininos. “A inclusão digital é fundamental para acessar conteúdos, se comunicar e continuar a importante luta que nossos ancestrais vêm travando desde sempre, e que nos permitiu chegar até aqui”, completa.
O projeto Reciclotech envolve diversas ações de coleta de lixo eletrônico, que passa por um processo de recondicionamento e é doado para alunos e alunas de escolas públicas. Também fazem parte do projeto cursos de formação na área de tecnologia. Além do descarte ambientalmente correto, o projeto estimula a doação do que está ocioso ou com defeito. Esse material passa por um processo de recondicionamento que permite o reuso. Toda a ação é estruturada para promoção da inclusão digital, ferramenta fundamental para a promoção da ciência.
Espaço de fala
“Ser ouvida”. Essa foi a resposta da administradora e diretora nacional do projeto Include by Campus Party, Sidiane Zanin, 32, ao ser questionada quanto à maior dificuldade que enfrentou como mulher no ramo da tecnologia. Idealizadora da Metodologia Include — sistema de ensino baseado na experiência de ensinar tecnologias em comunidades carentes do Distrito Federal, Rio Grande do Norte, Paraná, Santa Catarina e Bahia — ela conta que procura criar incentivos para que mais mulheres entrem no mundo tecnológico.
Para isso, Sidiane abre oportunidades por meio do projeto Include. “Reservamos 50% das vagas para alunas e incentivamos que, ao menos, 50% da equipe pedagógica sejam formadas por mulheres. Nem sempre conseguimos. O ‘isso não é pra mim’ ainda é muito forte”, lamenta a diretora. De acordo com ela, 70% da equipe interna de gestão do projeto são de mulheres.
A iniciativa foi desenvolvida a partir das necessidades da base, por exemplo, ensinar tecnologia com materiais reciclados e sucatas, em vez de usar blocos padronizados. “Em termos de estrutura e acesso à tecnologia, nosso projeto buscou sempre trazer materiais de qualidade e excelência, além de um layout de sala de aula produzido para tornar a experiência dos alunos mais atual possível”, explica Sidiane. O projeto existe há três anos e está presente em oito estados. “Temos um objetivo bem ousado de abrir 10 mil laboratórios em comunidades carentes de todo o Brasil”, diz.
Como diretora, Sidiane diz que são poucos e restritos os incentivos que existem, hoje, para a participação das mulheres no ramo da tecnologia. “Os poucos incentivos que existem, em sua maioria, estão ligados a carreiras acadêmicas, quando na verdade, os profissionais de tecnologia se desenvolvem por meio de comunidades próprias — criadas dentro do mundo digital —, ou de maneira autodidata”, explica. “O que falta é a oportunidade na base. É esse o ciclo vicioso que se perpetua e que o Projeto Include busca romper”, completa.
Para que essa realidade melhore, a diretora diz que é preciso ouvir genuinamente as mulheres e criar incentivos reais, oportunidades, antes de bloqueios quase sempre advindos do preconceito. “Em resumo, ampliar projetos e oportunidades voltados para as meninas, sobre tecnologia e cultura maker. Em todas as esferas, seria interessante a ampliação do acesso daquelas que estão em situação de vulnerabilidade social, mas na tecnologia a fala das meninas está impregnada da crença limitante do: ‘isso não é para mim’”, explica. Para as mulheres, Sidiane deixa o recado: “Quando chegarem lá, empoderem outras mulheres”.
Incentivo
Com o intuito de incentivar o ingresso de meninas no mundo das ciências exatas e das engenharias, a Faculdade de Tecnologia (FT), da Universidade de Brasília (UnB), criou o Projeto Meninas Velozes. A ideia de realizar um projeto de extensão que promovesse a igualdade de gênero e, ao mesmo tempo, permitisse motivar o ingresso de jovens e meninas nas áreas de Stem.
Segundo a coordenadora do projeto e engenheira mecânica, Dianne Magalhães Viana, 56, a iniciativa teve início a partir da inquietude de que, na UnB, o percentual de mulheres é de cerca de 20% nas áreas de ciências exatas e engenharias. “Como mulher, com os meios que eu disponho no âmbito universitário, sinto uma grande satisfação em criar oportunidades para que outras mulheres construam suas carreiras e possam fazer suas escolhas”, diz a coordenadora.
Parceria com escola
Para contribuir com o acesso de estudantes de escolas públicas do DF ao universo da ciência, foi estabelecida uma parceria com o Centro de Ensino Médio 404, de Santa Maria. Desde então, todo ano são selecionadas cerca de 20 alunas para participarem do projeto de extensão e do programa de iniciação científica da UnB. As estudantes são contempladas com bolsas de iniciação científica júnior da UnB, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ou da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF).
O fato de ser um projeto de extensão universitária mostra a importância da universidade na proposição de soluções para problemas que afligem a sociedade, conforme explica Dianne. “Um projeto pode parecer pouco, mas ele se soma às várias iniciativas que vêm sendo apoiadas pelo CNPq para incentivar, cada vez mais, mulheres a assumirem seu papel de igualdade nas áreas de ciências e engenharias”, defende.
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Engenheira e professora da UnB fala sobre inclusão das mulheres na ciência
Três perguntas para: Maura Angélica Milfont Shzu, engenheira civil e professora de engenharia automotiva da Universidade de Brasília (UnB)
No ramo da tecnologia, qual a atual situação do DF quando se fala de inclusão e igualdade?
Acho que, embora tenhamos tido muitos ganhos na questão de gênero, ainda há muitas conquistas a fazer. A equidade ainda não é realidade. Temos muito mais homens nos departamentos de engenharia, por exemplo. Acredito que isto seja consequência de uma cultura patriarcal, que ainda insiste em se sustentar. Dentro da minha vivência na engenharia, sempre tive mais colegas do sexo masculino; e não é diferente agora no exercício de minha profissão. Há alguns pontos que interferem no desenvolvimento das mulheres no ambiente de trabalho. Temos amarras fisiológicas que os homens não têm. Nós engravidamos e o nosso break da maternidade não é considerado na nossa produção acadêmica. Se os homens tivessem o mesmo período de licença que nós temos, ganharia a criança, o casal, a família, a sociedade e a luta da equidade de gênero. Veja só, muitos ganhos com apenas uma medida só!
Hoje, há o devido incentivo na participação das mulheres no ramo da tecnologia?
Este incentivo começa desde criança, mas precisa, muitas vezes, ser viabilizado com políticas públicas de equidade de gênero. Evoluímos um pouco nesta questão, por isto encontramos mais mulheres empoderadas, em lugares estratégicos, quando comparamos com anos atrás. Embora ainda não tenhamos um design de equidade, essas vozes estão ecoando. Dentro das escolas, as discussões de gênero têm promovido, para as mulheres, um encontro com elas mesmas. O projeto de extensão Meninas Velozes, da Universidade de Brasília, tem relatos interessantíssimos sobre esta questão. A mudança está em curso.
Onde a sociedade, como um todo, precisa melhorar para dar mais espaço às mulheres?
Acho que a sociedade precisa melhorar na escuta, na busca da informação correta, na empatia. Precisa enxergar a importância de uma representação equitativa para que a exclusão e a injustiça não tenham o espaço farto que atualmente têm.