Saudades da feirinha
“E aí, comandante, não apareceu mais na feirinha!”, observou o vendedor de abacaxi, um piauiense que conheço há mais de 20 anos. Não sei o nome, chamo de Piauí. Ele tem uma caminhonete e busca laranja em Água Fria, Goiás, e abacaxi e pequi nos cerrados do interior de Minas. Nos tempos em que construía a casa onde moro passei tempos de muito sufoco financeiro.
Todo dinheiro que ganhava virava cimento, tijolo, telha, areia, brita e pagamento para os pedreiros. Então, quando passava pela caminhonete do Piauí, ele me oferecia laranja ou abacaxi. Algumas vezes, eu recusava e dizia que não tinha dinheiro.
Mas, nos tempos de penúria, ele sempre me deixou levar as mercadorias mesmo que não tivesse grana naquele momento: “Depois, você me paga, comandante”. Tenho ascendência sertaneja, gosto quando as pessoas confiam e negociam baseados na palavra empenhada.
Com a chegada de um hortifruti sofisticado, Piauí sofreu uma concorrência desigual e perdeu freguesia. Por isso, agora, mesmo quando não preciso muito, sempre compro algumas frutas para cooperar.
Ele vende, também, as frutas em uma feirinha popular em São Sebastião. Eu ia sempre lá aos domingo. No entanto, com a pandemia, deixei de frequentar, pois observei de longe e vi que as aglomerações são enormes. Fazia economia, trazia frutas e legumes frescos e ainda ajudava os pequenos produtores a sobreviverem.
Uma senhora guardava os biscoitos artesanais que fazia para nós mesmo quando chegávamos tarde. O pessoal da banca do queijo também nos dispensava idêntica cortesia. Essas pequenas gentilezas e considerações contam na hora de fazer as compras.
Existem muitos angolanos nas periferias. Na feirinha, encontramos uma africana zangada. Uma freguesa devolveu uma mercadoria, a senhora ficou brava e acusou: “Você tem coração ruim”. Minha mulher e eu tentamos apaziguar os ânimos, mas sobrou para nós: “Vocês também têm coração ruim”. Rimos e bandeamos para outra banca de angolanos.
Fui comprar bananas, mas o filho da dona da banca queria me vender por um preço duas vezes maior que o da semana anterior. Achei demasiado, reclamei e ele manteve-se inflexível. Como a pendenga não teve solução, viramos para ir embora. No entanto, a matriarca angolana nos chamou, deu uma bronca elegante, mas com autoridade no filho e ordenou que ele fizesse um preço justo. Dos seus olhos se irradiava uma luz intensíssima de bondade.
Prontamente, o filho atendeu. Ela pediu desculpas, mas não achou que era suficiente. Tateou algo na banca com as mãos e, de repente, agarrou duas batatas-doces e nos deu de presente para selar a paz. Aquela mulher do povo é uma sábia instintiva. Poderia mediar as nossas relações com a China muito melhor do que várias excelências.
Nem gosto de batata-doce. No entanto, confesso que fico arrasado com qualquer manifestação de bondade. Nunca mais fui à feirinha por causa da pandemia. Mas, algumas vezes, me pergunto: onde estarão a mulher do biscoito, o pessoal simpático que vende queijo, a angolana zangada e a angolana sábia?
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