Crônica da Cidade

Previsão do tempo

Adson Boaventura
postado em 12/02/2021 21:26

Falar sobre clima, política e pandemia é algo rotineiro não só em Brasília, mas um fenômeno que ocorre de Vladivostok a Machu Picchu. E é o assunto do momento na vida de Jovílson, vendedor de água em uma chuvosa parada de ônibus na Avenida das Palmeiras, em Taguatinga. Assunto, também, debatido no ponto onde está Jadranka, tradutora e bartender que mora em Nova Belgrado, a esperar em meio à nevasca o coletivo para visitar seus pais na região metropolitana da capital sérvia.

Jovílson parece repetir mantras para vender água, enquanto que um dilúvio se forma no centro de Taguá. “Olha a água, olha água. Dois reais, dois reais. Não é água da chuva. É mineral, é mineral, da garrafa. Dois reais, dois reais. Gelada ou natural”.

O povo aglomerado espera ônibus para Cidade Estrutural, Luziânia, Águas Claras, Águas Lindas... E haja água do céu. E nada do meu baú chegar. Em Nova Belgrado, a água deve continuar caindo em forma de neve para Jadranka. As senhoras, aglomeradas, reclamam do frio e do preço dos alimentos, mais caros e escassos no inverno.

Em Taguatinga, Joílson segue com sua palestra. “O pessoal fica aí, falando de aglomeração em festa. Olha aqui, tudo aglomerado, tudo trabalhador, na chuva. Mas a mídia só fala das festas e dos bares. E se a gente não vai trabalhar, é demitido. Vão até achar que a gente vai nessas festas para pegar covid e não ter que trabalhar. E o governo? Abre comércio, fecha comércio. Cadê a vacina?”, reclama o vendedor, tentando conquistar a simpatia dos trabalhadores e vender mais garrafinhas de água.

Outra voz aguda repete mais um mantra: “Estrutural, Estrutural, uma vaga, vaga... Estrutural, Estrutural, uma vaga, vaga...Estrutural...”. Meu ônibus chega. O motorista para de uma forma em que a porta de entrada fica exatamente em minha frente. Ela se abre, e dela sai, lentamente, uma senhora gorda, com umas ataduras na perna direita. Enquanto a espero descer, outras três pessoas tomam a minha frente e sobem primeiro. Subo na sequência, completamente molhado, e o velho Clóvis, motorista já conhecido de outras viagens, fala com um sorriso que não consigo entender (vai ver é momento do país, a pandemia, o aumento da gasolina, penso): “Tá foda a chuva, né?”.

Despacho minhas moedas no cobrador e vou em direção ao fundo do ônibus. Como não tinha sol, não fazia diferença qual lado sentar, e escolhi os únicos dois assentos livres à esquerda. Do lado oposto, exatamente em minha direção, uma mulher não parava de tossir. Ela carregava uma garrafa de água; antes, eu a tinha visto comprá-la do vendedor que falava sem parar. Imaginei que fossem expulsá-la do baú, pois tossia bastante. Ao invés disso, um senhor deu umas balinhas para ela. “De própolis, bom para a garganta, minha fia”, disse, sem cobrar nada pelo doce. Fiquei levemente emocionado, mas com medo e puto da vida de ela espalhar covid em todo o ônibus.

Em Nova Belgrado, Jadranka já deve ter pego o coletivo e dado o assento dela a alguma das várias senhoras do bairro, que vão ao mercado sempre no mesmo horário. Ela se arrepende de ter vendido o velho Yugo, herdado do pai. Vendeu o carro para pagar o aluguel atrasado do apê.

Estava chateada com o clima e a aglomeração no ônibus. Como alento, seus pais de 60 e poucos anos serão vacinados em breve; e ela será antes de mim. Após imunizada, tentará imigrar para Alemanha. Eu continuarei por aqui, em Taguatinga, ouvindo os “mantras da água e da Estrutural” na parada de ônibus, esperando ser vacinado. Por enquanto, a única previsão é de chuva, aqui, e de neve, lá. O mundo é uma onda.

 

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação