E, como neste ano, a pandemia impôs um carnaval sem carnaval, lembrei de um relato de Clarice Lispector sobre a festa, em que evoca uma experiência de infância. Na verdade, ela pouco participava. Não frequentava os bailes infantis e não se fantasiava. No entanto, a deixavam ficar até as 11 da noite na porta da rua do sobrado onde morava.
Mas apenas ver a festa era um espetáculo para a menina, inebriada pela atmosfera e pela música que embalava a folia: “E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu”.
Economizava todo o dinheiro que ganhava para comprar um lança-perfume e um saco de confete. Somente a avidez pela festa já a tornava feliz. O encontro com as máscaras causava, a um só tempo, medo e fascínio: “À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim”.
No entanto, a rotina dos anos de carnaval se rompeu com uma edição inusitada. Clarice nunca era fantasiada. Mas a mãe de uma amiga resolveu fantasiar a filha e sobrou um pouco de papel crepom. Com ele, confeccionaram uma roupa de flor para a menina Clarice, aos 8 anos. Não importava que fosse precária; para a menina, era a fantasia mais bela que já vira: “Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma”.
O temor era de que chovesse e a roupa de papel crepom se derretesse toda. A menina engoliu o orgulho de só ter uma fantasia por causa das sobras do vestido da amiga e aceitou o destino dado de esmola. Mas o destino jogou os seus dados de maneira surpreendente. A mãe de Clarice piorou de saúde e a menina recebeu a ordem, em tom de ultimato, de correr até a farmácia para comprar um remédio.
O sonho de carnaval havia se desmoronado. De nada adiantou a casa se acalmar e ser penteada e pintada pela irmã: “Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina”.
No entanto, o destino voltou a jogar os seus dados algumas horas depois. Um menino bonito de uns 12 anos cobriu os cabelos de Clarice de confete, numa mistura desconcertante de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade. “Por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.”
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