Mesmo que não houvesse pandemia, eu estaria confinado nesta época do ano. Nos tempos de adolescente, eu achava que violência era coragem; mas, hoje, vejo que violência é covardia. E isto me afastou do carnaval. Mas, apesar disso, sou um pierrô atípico: eu gosto de música carnavalesca. Quando ouço, sinto um sopro de alegria, de energia, de inteligência e de humor.
Na época da folia, os poderosos de plantão tremiam nas bases porque a revanche de humor seria implacável. A última manifestação musical neste sentido de que me lembro foi a marchinha O mosquito, do maestro Jorge Antunes, que espicaçava o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, acusado de negociações nebulosas, no ápice da epidemia de chikungunya: “A chikungunya está deixando o povo aflito/Eu xingo o Cunha/Eu xingo o Cunha de mosquito”.
Na segunda parte, Jorge Antunes flagrava Cunha em fuga, mas fechava o cerco em outra esquina: “Ele tá fugindo da Justiça/Mas sei que ele está frito/Pois tem conta na Suíça/Ai ai ai/O mosquito é bandido/Ai, ai, ai o Cunha tá fugido”.
Sinto falta de marchinhas com essa verve carnavalesca. Temos memes espirituosos, mas eles se perdem na nuvem do ciberespaço sem se transformar em música. No entanto, com honrosas exceções, a música empobreceu. Durante várias décadas, a axé music funcionou como a monocultura da soja, arrasando a biodiversidade sonora.
Existem sinais de alento com a retomada da folia dos blocos de rua nos últimos anos no Brasil e em Brasília. No entanto, tenho a impressão de que ainda não produziu uma música inventiva e que renove as tradições. O que música sertaneja tem a ver com carnaval?
Não saio em nenhum bloco, mas se saísse seria no Vai quem fica, no Tesourinha (nem sei se existem mais) ou no Divinas Tetas, que toca um repertório de primeira linha da tropicália. Não fui e gostei. A música de carnaval se realimenta e se renova na tradição.
Alê Gonçalves, um mineiro, e Celso Araújo, um maranhense, se encontraram em Brasília para celebrar e para fazer uma releitura do frevo, um ritmo eletrizante de pernambuco, mesmo quando não utiliza instrumentos elétricos. Dançar ou mesmo ouvir frevo é como se conectar em uma tomada elétrica de alegria.
Eles lançaram nas plataformas digitais o EP Toquem o frevo mais alto, com quatro canções, em que celebram, a um só tempo, o ritmo frenético e personagens essenciais da cultura pernambucana. Tudo retemperado com pitadas de rock, de jazz e de vários gêneros da música popular brasileira.
A dança das palavras do poeta Manuel Bandeira cai no frevo: “Manuel Bandeira dança só quando escreve/A chuva cai e molha a cama dos tais/Quando ficar triste desse jeito/Bota a estrela no peito/e sua estrela vai te libertar”.
A constelação de gêneros e de personagens que frequenta as canções de Chico Science é mixada em uma colagem de referências aceleradas pelo rock: “Francisco de Assis França/Mas pode me chamar de Chico Science/Amigo de Jimi e de James Brown/science fiction para vencer a eugenia”.
A capacidade de Capiba mobilizar a alma das ruas é transformada em canção: “Capiba é a voz da multidão/Se jogando em pleno no ar/Capiba destrói a solidão/com um golpe musical”. Toquem o frevo mais alto traz um sopro de ritmo, de poesia e de alegria nestes tempos tão áridos.
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