Como se sabe, sou ainda um garotão, mas tenho dois netos lindos, Judá, de 3 anos, e Aurora, de 7. Com a pandemia, convidei a minha filha e a dupla para morar em nossa casa, situada em um condomínio horizontal, fronteiriço a uma mata cerrada. Ficávamos preocupados e com saudade.
Judá e Aurora são uma festa permanente, espalham alegria aonde chegam. Estão sempre animados para brincar. O contraste entre o drama da pandemia e a inocência deles é pungente. A extensão da crise sanitária exige atenção à saúde física e mental das crianças.
Na verdade, Aurora tem alguma consciência sobre a situação, fazia muitas atividades, que foram interrompidas: “Esse coronavírus é um idiota”, sentenciou. Não quis entrar em detalhes, mas deixei escapar a ela que existem outros personagens mais idiotas.
A sala é ampla e virou pista de skate, de corrida, campo de futebol, sede de jogos e palco de apresentações teatrais. Aurora faz ginástica artística e antecipou que, quando crescer, terá uma escola de dança para crianças. No carro, realizou uma enquete e pediu ideias para o nome da escola. Sugeri “Desenferrujando os ossos”.
Aurora não gostou e fulminou: “Nunca, nem pensar”. Insisti que “Desenferrujando os ossos” era um nome imbatível, mas não a convenci: “Nenhuma criança vai estudar em uma escola com um nome desses”, contra-argumentou.
Parece que Aurora saiu de uma academia de balé celestial; e Judá, de uma caverna celeste. Ela caminha com passos de bailarina; ele é forte e marrento, como um lutador de MMA. Quando crescer e passarmos por essa tormenta, vou matriculá-lo em uma escolinha de artes marciais, para aprender disciplina, defesa pessoal e controle da força.
É moleque total: “Ih, dei um pequeno arrotinho”. Imagino que, se Guimarães Rosa ouvisse Judá falando, anotaria tudo no caderninho. Se ele está com fome, não pede; empilha, perigosamente, duas cadeiras e sobe na geladeira para pegar um iogurte. Resolve a parada. É sentimental, não pode levar uma bronca que apela: “Você não me ama”.
Ensinamos para ele que quem ama educa. Fiquei pensando que, no fim das contas, essa é a grande questão da vida: quem nos ama e quem não nos ama.
Judá e Aurora ficaram muito tristes ontem. A vizinha vai construir a casa no lote ao lado, e foi preciso, de comum acordo, derrubar diversas árvores para erguer um muro na divisa. As crianças fizeram um movimento contra os trabalhadores que cortavam as goiabeiras, amoreiras e pitangueiras, nascidas, desordenadamente, sem serem plantadas. Inútil explicarmos a situação para os dois.
Para as crianças, derrubar árvores é um crime inafiançável. Permaneciam estáticas, grudadas na porta de vidro, observando a operação devastadora e ouvindo o som sinistro da motosserra. A certa altura, Aurora pediu: “Vocês podem me emprestar o celular, só um instante? Vou ligar para a polícia e pedir que prendam os moços que estão derrubando as árvores”. Judá botou mais lenha na fogueira: “Os moços estão esmagando as árvores de minha avó”.
Os dois gostavam muito de olhar para as flores do outro lado do lote. De qualquer maneira, foi triste, mas prometi a Judá e Aurora que, depois de erguerem o muro, vamos plantar muitas árvores e flores lindas para eles.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.