Tenho um amigo que gosta de visitar o túmulo do pai. Gosta de ir lá, de vez em quando, para, como ele diz, conversar com as memórias. “O velho não está mais aqui. Mas ainda existe dentro de mim”, ele explica. Então, pra que ir até o cemitério? Não que eu tenha medo ou veja problemas em ir ao cemitério, claro. A ideia, ele explicou, é como a de um ritual individual. A proximidade dos restos mortais do pai o ajuda a evocar aquela memória com a qual ele deseja conversar. Ela, a memória, não responde, ele disse. Mas, como se trata de algo que, na verdade, faz parte do filho, e não do pai, funciona como uma reflexão.
Fui autorizado a contar a história, desde que preservasse a fonte. Ateu convicto, ele aprendeu a ver a continuidade da vida nas memórias e na cultura que recebeu dos pais. Às vezes, a coisa endurece. A vida, criança, aperta os dedos nos nossos braços e corações, como se fôssemos de massinha, e é mais duro ter a tal conversa, ele relatou. Às vezes, a vida nos empurra e vamos rápidos como bola de gude, e tudo parece bem, ao menos até o próximo acontecimento. E às vezes, parece que está tudo bem, mas vem a saudade, com dedo frio, esvaziar os arredores dos universos particulares.
As conversas foram mudando com o tempo. Quer dizer, não é que ele fosse ao cemitério todos os dias, ou semanalmente. Me garantiu que é algo esporádico. Como se, ao precisar ficar só, consigo mesmo, escolhesse, também, ficar com o que restara do pai, que, explicou, é tão parte de si quanto unha, já que sua existência povoa os seus neurônios trilhados no caminho contrário ao do futuro. Há até outras versões do mesmo pai, com seus irmãos e quem se lembra dele.
A conversa sobre morte, existência, extinção, correu solta. Correu leve. Vozes do outro lado do telefone, que escutei com atenção durante uma caminhada matinal cinzenta, mas alegre, no Eixão do Lazer. E como as conversas dele com o pai mudavam a cada esporádico encontro, ele percebeu que lidava com a própria saudade, com a própria dor, e, assim, lidava melhor, também, com a vida. Com o trabalho que invade o lar e as afetividades nos tempos de pandemia, com os perigos e o medo da perda, constantes na vida de todos nos nossos tempos, como um estranho no vagão. Mesmo que não quiséssemos ver.
Certa vez, depois de algumas palavras, cobranças de um filho insatisfeito, porque você não estava lá, porque não me falou, por que fez isso ou aquilo, ele mesmo sentou sobre o retângulo de concreto e chorou, pedindo desculpas. Uma outra vez, falou em voz alta sobre a própria vida. Os funcionários da Campo da Esperança pensaram que ele rezava. Ou ele pensou que assim pensavam dele. Envergonhou-se. Dessas vergonhas tolas que temos, na verdade, de nós mesmos. A conversa correu como um encontro constrangedor entre pai e filho, sombrios em uma sala tensa, como em uma canção triste de Sérgio Sampaio.
A última, ele disse, foi a mais emblemática. Em um dia difícil, sob o chuvisco, parou o carro, caminhou até o memorial e, sobre o concreto e a cruz, preparou-se para rogar emoções fortes, como quem estivesse em vias de atacar, de pôr o dedo em riste, mas não ergueu a mão. Em vez disso, perguntou. “Quem de nós podia imaginar que a distância seria tão determinante? Quem de nós poderia imaginar que a vida nos separaria assim? Quem de nós poderia ter imaginado tudo que aconteceu antes que acontecesse?"
"Quem?” A resposta era clara. Ninguém. A vida é rascunho. Não dá pra viver antes o que se deseja viver. E depois de vivido, vivido foi. Aquela era uma conversa de perdão. Perdão para quem, perguntei. “Perdão para mim.”
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