ESPIRITUALIDADE

Vale do Amanhecer adapta rituais para receber fiéis em meio à pandemia

O Vale do Amanhecer, em Planaltina, é reconhecido como a primeira doutrina fundada à época da construção de Brasília. Com a covid-19, rituais foram adaptados

Jéssica Moura
postado em 28/02/2021 07:00 / atualizado em 28/02/2021 12:52
 (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press                              )
(crédito: Ed Alves/CB/D.A Press )

Ao avistar o portal do Vale do Amanhecer com uma representação da Lua e do Sol no topo, às margens da DF-130, é possível perceber que naquele terreno em forma de triângulo predomina o misticismo. O bairro, a 44km do Plano Piloto, se consolidou em uma área rural em Planaltina e atrai frequentadores em busca de atendimento espiritual. Contudo, onde antes da pandemia do novo coronavírus passavam cinco mil pessoas por semana, agora transitam cerca de duas mil.

A crise alterou a rotina dos rituais e exigiu que a fé se adequasse à ciência. “Nós cuidamos do espírito, a matéria é com os médicos”, pontua Raul Zelaya, 73 anos, presidente do Vale. “Em nossos trabalhos não tem como fazer só palestra, é de contato”, ressalta.

As ruas e vielas ficaram esvaziadas, mas quase tudo no lugar ainda inspira à religiosidade: nas fachadas das casas, há símbolos como a estrela de Davi, ou placas com figuras de Iemanjá — indícios do sincretismo religioso que é característico da doutrina criada pela caminhoneira Neiva Zelaya, antiga presidente do Vale do Amanhecer e conhecida como Tia Neiva, que morreu em 1985. Aliás, fotos da médium se espalham por vários edifícios do Vale. O comércio local também é voltado para a venda de artigos ligados à doutrina.

Márcio Santos, 44, mudou-se de Pernambuco para o Vale em 2014, depois que se casou com uma moradora. “Eu criticava muito isso aqui, não compreendia os rituais, mas não tem nada a ver. Aqui é lugar de tolerância, as pessoas vêm para se curar de problemas espirituais.” Agora, ele é recepcionista e trabalha como voluntário no Vale do Amanhecer.

Ao caminhar pelo interior da cidade, atrás das casas, os visitantes são surpreendidos por uma construção em forma de pirâmide, com uma escultura egípcia na porta. A alguns metros dali, há uma estátua gigante de Jesus Cristo, que antecede o chamado Templo-Mãe: a sede onde ocorrem os atendimentos espirituais e ritos da doutrina. O espaço em forma de elipse é multicolorido: azul, amarelo, roxo, vermelho e verde — cores que também estão presentes nas outras construções. Para entrar, é preciso ter a temperatura aferida.

Em vez da badalada de sinos católicos, uma sirene anuncia que os trabalhos vão começar. Lá dentro, os fiéis e médiuns se reúnem para realizar as atividades. Os seguidores da doutrina, identificados pelas longas túnicas brancas ou saias e véus coloridos, usados nos rituais, também incorporaram as máscaras como equipamento de proteção. Agora, parte dos bancos dentro do templo tem marcações com um “X” para evitar que as pessoas se sentem perto umas das outras.

Daniela da Silva, 35, é dona de casa, mora no bairro há 25 anos e há 20 está na doutrina. “Já fui e voltei várias vezes. Aqui, a gente distribui energias e pratica a caridade. Com a pandemia, foi muito difícil ficar longe”, relata. Ela, que costumava frequentar o templo até quatro vezes por semana, agora vai apenas quando está escalada. “Eu sentia muita falta, porque amo meu trabalho espiritual, me sinto bem fazendo caridade. Agora que estou voltando a fazer os trabalhos, mas depois vou direto para casa. Em algum momento, tenho um receio, mas peço ao Pai que tome conta.”

Por dentro, o Templo-Mãe é decorado com imagens e grandes quadros de entidades religiosas, algumas correspondentes às da umbanda. “Temos um ilustrador que recebeu essa missão de Tia Neiva. Assim como ela viu nos planos espirituais, ele passa para o papel”, explica o chefe da recepção, Itamir Damião. Ela deixou anotadas a lápis em cadernos as diretrizes da doutrina, que hoje é presidida pelo filho, Raul Zelaya. “Ela só tinha até o 3º ano primário, a letra dela era difícil de entender, mas deixou tudo escrito e passamos a entender o que ela queria”, afirma.

No templo, a iluminação é baixa, o que reforça a aura mística. Mesmo sob a máscara, é possível sentir o aroma adocicado do local, que lembra o de incensos. No centro do amplo espaço, os mestres se reúnem em torno da “mesa evangélica” para tratar dos espíritos recém-desencarnados.

Figuras e símbolos com mais de dois metros de altura estão dispostos no espaço, envoltos em tules. Nas margens, há diversas antessalas menores, onde ocorriam atividades como os passes. “O lugar é pequeno, eram muitas pessoas, não tinha condições de realizar certos rituais porque não teria como manter o distanciamento”, conta Itamir.

Ao se cruzarem nos corredores, os mestres, como são chamados os integrantes da doutrina, se cumprimentam: “Salve, Deus!”. O templo ainda comporta 42 “tronos” — assentos onde os frequentadores encontram com os médiuns que incorporam as entidades. Antes e depois do atendimento, eles higienizam as mãos com álcool. A empresária Amanda Carvalho, 23, veio de Fortaleza (CE) exclusivamente para conhecer a unidade de Brasília. “A questão de a gente ter vindo é que a emanação é diferente, tudo partiu daqui, aqui é a origem, toda a força está concentrada aqui e se expande para o Brasil inteiro.”

Em março, as atividades foram suspensas com a edição do decreto assinado pelo governador Ibaneis Rocha que definiu regras de distanciamento social para evitar a disseminação do vírus. Foi em julho que as atividades foram retomadas. Rituais como o da estrela cadente, que costumava reunir 216 pessoas por sessão, não acontecem mais. Outros, como a “imunização”, foram mantidos às quartas e sábados, e são apelidados de “vacina espiritual”.

Às 12h, outra prática ainda se repete e rompe o silêncio do local: os médiuns, usando as vestes características da doutrina, em grupos de dez pessoas, caminham entre as ruelas e param nas esquinas. De repente, formam um círculo, erguem os braços e se põem a cantar em uníssono: é chamado o abatá, em que rezam pela limpeza e purificação da comunidade.

Espiritualidade

O nome no crachá de Caio Oliveira, 24 anos, o descreve como Tomé. “É a entidade do Preto Velho que trabalho.” Foi durante uma aula de filosofia no ensino médio que ele despertou para a própria espiritualidade. “Minha mente explodiu, na aula sobre o filme Matrix, com as pílulas da verdade e da mentira. Comecei a me questionar de tudo”, recorda.

Nesse período, Caio ainda ia à igreja evangélica com o pai, mas adotou práticas do budismo. Em seguida, também se consagrou na ayahuasca. “Mas foi no Vale que vi onde era minha casa, onde minha mediunidade poderia ser bem aproveitada. Aqui, posso trabalhar no amor e na caridade”, pontua. De paciente, ele passou a médium em janeiro de 2020. “Trabalhar espiritualidade é como cuidar do corpo e mente, ou beber água”, sentencia.

“Aqui era um deserto, uma fazenda velha, mamãe que começou com tudo”, lembra Raul Zelaya. Enquanto os candangos construíam as bases da nova capital, em 1959, a médium Neiva Zelaya edificava a Doutrina do Amanhecer, a primeira a ser criada junto com o Distrito Federal. Sergipana, viúva e mãe de quatro filhos, Neiva, que era caminhoneira, foi contratada pela Novacap. Dez anos depois, sob a inspiração dos dons mediúnicos, ela inauguraria o templo do Vale do Amanhecer, que atraiu os moradores da região para a cidade sagrada.

A religião ritualística congrega práticas de diversas outras manifestações — do catolicismo ao espiritismo, passando por religiões de matriz africana, crenças egípcias, maias e incas. Para os membros, seres de outro planeta vieram à Terra há 32 mil anos e criaram a espécie humana. Esses passariam por diversas encarnações ao longo dos anos e estariam incorporados em membros atuais.

Depois da demarcação da Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), o Vale ocupa hoje uma área de 2,6 hectares onde vivem 25 mil habitantes. Para além do DF, a doutrina se espalhou por todos os estados, onde estão em funcionamento 310 templos, que reúnem mais de 1 milhão de médiuns. Estrangeiros que se interessaram pela religião vieram a Planaltina e pediram para levar os rituais a suas cidades. Assim, a doutrina do Amanhecer foi exportada para Portugal, Inglaterra, Suíça e Alemanha.

Em resposta, o governo afirmou que a escolha do terreno foi feita junto com a comunidade e líderes do Templo. Segundo o Buriti, "o espaço não interfere nas atividades religiosas, pelo contrário, será feita uma UBS para abrigar quatro equipes de saúde da família".


Funcionamento

• Embora as atividades ritualísticas tenham horário marcado para acontecer e sejam orientadas por integrantes voluntários que seguem uma escala de trabalho, o templo não fecha as portas aos que buscam um atendimento espiritual. “Mesmo de madrugada vem gente com problema espiritual”, relata Itamir Damião. Um médium fica de plantão para os casos emergenciais.

 

 

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Para saber mais

Impasse judicial

• Mas a fé é atravessada por outras questões mais mundanas: as ações judiciais. Atualmente, o Vale do Amanhecer trava uma disputa com o governo do Distrito Federal e com a Terracap pelo uso de parte da propriedade. Um posto de saúde está sendo construído no local. A obra, que havia sido embargada pela Justiça, foi retomada em maio do ano passado. No entanto, a organização contesta a continuidade e quer que a construção seja demolida. O advogado Luciano Medeiros diz que a obra “está bem na frente do Nascer do Sol (Leste), elemento natural que impedirá o recebimento dos primeiros raios solares ao nascer. É caracterizado como verdadeiro vilipêndio contra as crenças dos médiuns”.

• Em resposta, o governo afirmou que a escolha do terreno foi feita junto com a comunidade e líderes do templo. Segundo o Buriti, “o espaço não interfere nas atividades religiosas, pelo contrário, será feita uma UBS para abrigar quatro equipes de saúde da família”.

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