Metade do rosto é olhar
Metade do rosto, ou um pouco menos, é o que passamos a reconhecer nas ruas. É assim no trabalho, entre vizinhos, com o motorista do ônibus, no caixa do supermercado ou da padaria. Vemos cada vez melhor com menos para se ver, talvez. No jornalismo político, para reconhecer um parlamentar de quem ainda não se ouviu falar (são 513 deputados e 81 senadores), alguns jornalistas buscam pelas fotografias no Google e cobrem a parte de baixo com o dedo para tentar vê-lo de máscara. Mas, às vezes, fazem falta os lábios ou sorrisos. Faz falta, até, conhecer o formato dos dentes. As expressões, se completas, iluminam o rosto e dizem, quase sempre, mais que as palavras.
Ouvi uma menina confessar ao pai, próximo à entrada do metrô, que ainda não conhecia o rosto inteiro da professora. Professora da qual ela sente falta desde o início desse novo e necessário lockdown. Uma menina. Devia ter uns 6 anos. De máscara, cabelo cacheado, de mãos dadas com o homem que, para ela, deveria parecer gigante. Um gigante de máscara. Nas redes sociais, uma amiga contou que dormiu, sonhou e, no sonho, as pessoas usavam máscaras. Queria saber quantas pessoas já “sonharam de máscara”. Isso, de ver menos, de não apertar a mão, de não abraçar, provavelmente provocará transformações curiosas no nosso jeito de ser.
E a gente se pergunta o quanto vai durar a pandemia e tenta prever como ela redesenhará as relações entre as pessoas com tantas distâncias e pudores. É difícil dizer quando será seguro, por exemplo, não usar mais a máscara. Certamente, não tão cedo. E se a gente vê menos expressão, por exemplo, se precisa se contentar com cerca de um terço do rosto das pessoas com quem convivemos no trabalho ou no mercado, a gente passa a olhar mais para o que restou. Seja na busca insistente por lembrar, com menos informação, de quem é mesmo aquele olhar que nos encara, seja para passar a conhecê-lo e reconhecê-lo. Por isso, esses comportamentos tendem a, pelo menos, derramar a tinta do presente no que virá a ser o amanhã.
Mas o que é esse um terço do que restou dos rostos sob as nuvens densas da incerteza? São só olhos, os cílios, a sobrancelha, a testa e as rugas, as entradas nos mais velhos, os óculos, o cabelo negro ou grisalho, liso ou crespo, às vezes as orelhas. Mas quando a gente gosta, principalmente, são os olhos que aparecem. Os olhos ficaram mais fortes com suas cores únicas e as marcas de expressão que os expandem. E a gente passou a se preocupar mais quando eles aparecem apagados sobre a linha das máscaras. Cansaço? Tristeza? Ansiedade? Alguém doente na família? Um novo recorde de mortos e o já esperado desdém presidencial?
Às vezes, eles, os olhos, parecem acompanhar os ombros, cansados de carregar o fardo do trabalho que invade as horas dentro do lar, as horas que já foram dos familiares. Mas também sorriem e se apertam, quando, de repente, por coincidência, no mercado, ou no portão da avó, da mãe, ou do amigo, tentamos matar a saudade, e vemos aquele outro par de olhos amados. Eles se apertam, emitem luz, as rugas denunciam um sorriso bem escondido. “Estamos seguros”, dizem os olhos.
E os faróis avessos que nos revelam o mundo também brilham ao ver os ombros nus de amantes que se aproximam. Pescoço, nuca, ainda há o resto do corpo a se expressar, claro. Mas, será que, depois das máscaras, ainda vamos nos lembrar de olhar nos olhos da mesma forma ou isso se perderá no caminho como se perderam tantos outros hábitos? Será que um poeta escreverá sobre os olhos negros da amada sobre a máscara amarela? Aqueles olhos que se cruzaram, cheios de desejos, em uma feliz coincidência do destino, mas sem os lábios. Não dá pra saber, mas dá pra imaginar. Na dúvida, use máscara e olhe nos olhos.
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