Enquanto o mundo explode, gostaria de propor um intervalo para respirar e comentar uma polêmica, na qual chego atrasado porque, em tempos de pandemia, os assuntos nos atropelam e se impõem. O youtuber Felipe Neto deflagrou uma verdadeira polêmica, um debate de ideias, sobre a pertinência ou não de que os jovens leiam Machado e outros clássicos na escola.
Li artigos e depoimentos muito interessantes. Alguns disseram que se não fosse a escola, nunca leriam Machado. Assino embaixo, fui salvo por alguns livros lidos na adolescência. Eles me deram uma resposta para situações difíceis e dramáticas que eu vivi. Já contei a história do episódio em que meus amigos atiravam gatos nos muros por simples divertimento sádico inaceitável. Eu repudiava o ato, mas não tinha coragem de me manifestar.
Mas, certo dia, a revolta e o sangue me subiram à cabeça, eu os chamei de imbecis e rompi com todos. Por acaso, li no romance Crime e castigo, de Dostoiévski, que o personagem Raskolnikov se abraçou a um cavalo ensanguentado para impedir os acoites, enquanto a turba urrava de chacota estúpida. Antes, me achava o último dos homens, no entanto, depois da leitura, percebi que a minha revolta poderia ter algo de heroico e não apenas de patético.
Claro que pode não ser fácil a conexão com Machado pela distância da linguagem. Mas isso é um empecilho relativo. À medida que eu ia ampliando o meu repertório percebia o maravilhoso senso de humor de Machado: “Quase caí das nuvens, o que é melhor do que cair do terceiro andar”.
Ele era moderno no século 19, antes do modernismo do século 20 de Oswald e de Mario de Andrade. É moderno e eterno. Ele escreveu com a pena enfiada na tinta da galhofa e da melancolia. Era oblíquo e dissimulado como a personagem Capitu. É falsa a impressão de que Machado era alienado e absenteísta da política, embora fosse um cético e um galhofeiro: “Entrei na política por gosto, por família, por ambição, e um pouco por vaidade. Já vê que reuni em mim só todos os motivos que levam o homem à vida pública...”
Defendeu o voto feminino numa época em que a mulher era completamente submissa pelos valores patriarcais, com ironia: “Venha, venha o voto feminino; eu o desejo, não somente porque é ideia de publicistas notáveis, mas porque é um elemento estético nas eleições, onde não há estética”
Admito que a obra do Bruxo do Cosme Velho apresente dificuldades iniciais para os mais moços. No entanto, a linguagem dele é de uma riqueza de matizes, de sutilezas e de nuances, que justificam o esforço da leitura. Machado é, absolutamente, atual: “Isto de ver um governo e um partido radical, arrolhando a imprensa, não é coisa nova, mas há de ser sempre coisa ridícula”.
Machado tem leitores em todo o mundo e o crítico Harold Bloom incluiu o bruxo na lista dos 100 gênios da literatura universal. Carlos Drummond de Andrade, que começou contestando Machado, e, em seguida, o incorporou à própria poesia, considerava o carioca um verdadeiro milagre brasileiro: “O velhinho gago e burocrata é hoje um universo de símbolos, palavras e achados artísticos, que poder nenhum saberia cassar. Nosso país ficou mais opulento, à custa desse funcionário pobre”.
Lembrei-me de Machado porque a Confraria dos Bibliófilos do Brasil prepara edição artesanal de arte da novela O alienista e do conto O anjo Gabriel. Os últimos ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura são bons, mas estão muito aquém de Machado.
A instituição sueca deveria conceder um Nobel retroativo a Machado. Mais que nunca, neste momento em que alguns brasileiros tanto nos envergonham, é muito prazeroso celebrar um brasileiro que nos representa, que nos enche de orgulho. Prêmio Nobel para Machado.
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