Crônica da Cidade

Fernão e Sávio

Luiz Calcagno
postado em 19/03/2021 19:28

Um “TBT” para aliviar. Sávio passou, e quase não me dei conta. Um cara legal, que ensinava os turistas a remarem de caiaque na Bahia. Ganhava a vida assim, na humildade, na gentileza, na beira do mar. Garantiu-me que não trocava o litoral por nada e que muito do que tinha na vida o dinheiro não pagava. E ia levando. Arrastava os caiaques até a água, instruía os fregueses, carregava os coletes, botava-os para secar, buscava as embarcações, arrastava-as novamente. “Não pode passar dali”, “só pode ir até o coral”. “Depois de não sei onde, volta”, “melhor remar desse jeito…” Por volta de 9h, fazia-se presente. Silhueta magra e sorriso. Pé na areia, vento no rosto, sem medo de sal ou água fria, Sávio fazia o que gostava e gostava do que fazia. Assim, sendo pobre, era, também, rico.

Eu mesmo nunca havia remado. Segui as instruções, mas também experimentei. Em uma ocasião, botei a filhota na frente e partimos rumo à miríade de vidas ocultas nos corais a quebrar as ondas. Desembarcamos. Vimos um caranguejo, um peixinho e um ouriço negro. Para as crianças, tudo é espanto. Nós, adultos, é que vulgarizamos a existência. Mas diante de novas experiências podemos rejuvenescer. Nos desfazer do trivial. E passei a remar todos os dias da estada. Uns com a pequena. E, quando o mar se agitava, ia só.

Em uma das vezes em que o Atlântico estava de mau humor, ao me preparar para o retornar à areia, fui atingido de viés por uma onda. Barco para um lado, remo para o outro, pés e mãos no coral áspero e, da praia, turistas assistiam ao teatro de um primata confuso, jogado às águas por ondas maliciosas. Na primeira tentativa de voltar à embarcação, aquele meio corpo desajeitado e distante apoiou-se na borda e virou o veículo sobre si. Ganhou uma marca vermelha na testa e, novamente, o rosto confuso emergiu da água salgada para recolher o remo e desvirar o caiaque. Determinado, o bronco repetiu o desastre. E submergiu impotente ainda uma terceira vez.

“Hora de mudar de estratégia”, raciocinou. “Subir de corpo inteiro.” E, investido de força para resistir, a massa de Homo sapiens ergueu-se heroica, viu-se fora do mar, rolou por sobre o caiaque, contemplou o céu azul por um instante, e virou para o outro lado, de volta às águas, impelido pelo próprio peso desalojado, arrancando gargalhadas na areia. E, na tentativa seguinte, o caiaque firmou-se misteriosamente. “Tente subir de costas”, recomendou a aparição de uma voz. Sávio segurava o veículo, enquanto, com a outra mão, firmava o remo. Pairava sobre outras águas, águas calmas.

Funcionou. O remador estava de volta ao jogo. Mas, em vez de seguirem para a costa, Sávio empinou contra as ondas. Arremeti atrás. “É preciso balançar com elas. Fazer um contrapeso para dar estabilidade”, explicou enquanto singrava. As ondas não eram truculentas quando dançávamos com elas. Para além dos corais, onde a água era mais azul, a sombra de uma tartaruga esvaneceu para surgir mais à frente. Quando se remava no ritmo da natureza, a pantomima cômica cedia lugar a uma antiga comunhão. Era a vida fora do fluxo, fora do imediatismo dinâmico e cruel do nosso mundo. Era o sol para além das cortinas de silício e vidro. A verdadeira linha do tempo se desenrolava-se ali, e nunca voltava atrás.

Feito o instrutor de Fernão Capelo Gaivota, Sávio mostrou como remar na agitação. Um jogo em que era preciso ir para voltar, obedecer, brincar a brincadeira do mar. Não podia haver disputa, ou os dedos da natureza venceriam, afundando-nos contra o leito arenoso com doçura ou violência. E, impelido pelas ondas, o homem tranquilo deslizou veloz rumo à praia, o remo transformado em leme, o sol a pino, e logo atrás, o extenuado aluno. Chap-chap, chap-chap… Na areia, os espectadores ainda achavam graça do espetáculo. No peito, o mundo ficava um pouco mais brilhante.

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