A pandemia da covid-19 fez com que a maioria das pessoas alterasse drasticamente a rotina. E as mudanças têm durado mais tempo do que o esperado. A falta de convívio social é desgastante para muitos, o que exige outras formas de manter as relações sociais e lidar com a solidão. Pesquisadores têm investigado esses efeitos no cotidiano e chegado a descobertas que chamam a atenção, como a busca por tecnologias mais antigas para se comunicar, uma maior resiliência em idosos, além de um sofrimento mais agudo entre as mulheres. Especialistas destacam que esses dados são importantes porque podem ajudar na tomada de medidas mais eficazes para evitar problemas como ansiedade e depressão.
Com a escassez de contato social, a tecnologia se tornou uma importante aliada para a maioria das pessoas. “Apenas um mês após o início da pandemia, empresas de telefonia celular, provedores de internet e plataformas de vídeo (webchat) e mídia social relataram enormes picos de tráfego”, relata, em comunicado, Natalie Pennington, professora de estudos de comunicação da Universidade de Nevada, nos Estados Unidos.
A cientista e sua equipe resolveram avaliar a relação de pessoas em isolamento social com as ferramentas tecnológicas, uma estratégia que também ajudou a identificar outras tendências comportamentais, segundo Pennington. “Nós perguntamos se esses recursos atenderam às necessidades de bem-estar social e psicológico e conseguimos ir muito além do que imaginávamos. Encontramos uma série de descobertas interessantes”, conta.
A equipe avaliou um questionário respondido por mais de 2 mil pessoas. Nas análises, descobriram que os tipos de recursos de comunicação mais usados foram telefonemas e mensagens de texto, o que os surpreendeu. “É um bom retrocesso em nossas expectativas gerais sobre o aumento do uso de chat de vídeo durante a pandemia. Vimos que o ato de ouvir e falar (ao telefone) era menos estressante aos analisados, e que esse recurso diminui os níveis de solidão e aumenta vínculos de relacionamento”, detalha Pennington.
O estudo também mostrou que os mais velhos têm lidado melhor com a solidão. “Nossa investigação mostra que pessoas com 18 a 29 anos constituem o grupo que mais sofre com o isolamento, apesar da disponibilidade de todas essas tecnologias de comunicação. Há outras pesquisas que sugeriram uma maior facilidade de lidar com a falta de contato social no grupo de idosos por eles já estarem acostumados com essa situação, e nosso trabalho reforça essa hipótese”, diz a pesquisadora.
A análise revelou ainda que voluntários em um relacionamento romântico relataram menos solidão e estresse, em comparação aos solteiros. Além disso, morar sozinho não foi associado a níveis mais altos de solidão, sugerindo que ter alguém em casa não significa se sentir menos solitário. “Em um estudo semelhante que fiz com outra equipe, constatamos que há muita tensão em algumas famílias porque elas disputam um mesmo espaço, o que pode ser muito estressante”, relata Pennington.
Convívio essencial
Segundo Leandro Freitas Oliveira, neuropsicólogo da clínica Viva Mais, em Brasília, os dados da pesquisa americana e de outros estudos científicos semelhantes mostram comportamentos que podem ser explicados com base no que a ciência já sabe sobre o perfil de alguns grupos. “Os idosos já estão, em parte, acostumados a lidar com determinado tipo de solidão, o que não quer dizer que seja algo saudável. Do ponto de vista neural, o nosso cérebro já tem uma certa referência de como é estar só e, consequentemente, o isolamento em si não é um grande fator de impacto”, explica. “Sabemos que chegar à terceira idade no Brasil, infelizmente, é quase um sinônimo de solidão.” Para o médico, a fonte de angústia dos mais velhos é diferente. “O maior sofrimento para a terceira idade são as incertezas: ‘Será que eu vou pegar o vírus? Como vai ser?’”, ilustra.
O neuropsicólogo lembra que as pessoas que moram sozinhas e têm lidado melhor com a solidão não deixam de sofrer com o isolamento, já que o convívio social é essencial para uma vida saudável. “É importante deixar claro que o Homo sapiens não foi biologicamente programado para viver só. É claro que temos indivíduos que sofrem mais no atual cenário, e que ficar um tempo sozinho pode nos fazer bem, mas o isolamento total foge totalmente à nossa biologia”, afirma.
Oliveira destaca ainda que pesquisas científicas que ajudam a entender o comportamento humano durante a pandemia poderão contribuir para a escolha de melhores tratamentos. “É essencial criar estratégias e mecanismos que nos ajudem a lidar com possíveis danos no futuro. Tivemos casos parecidos com o momento em que estamos vivendo, como a peste negra e a gripe espanhola, mas não tínhamos as ferramentas hoje disponíveis para estudar esse fenômeno. Isso será extremamente útil”, avalia.
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Jovens sedentários e deprimidos
Além do desgaste emocional provocado pela falta de convívio social, a interrupção da rotina de exercícios físicos tem prejudicado muitas pessoas. O efeito negativo dessa mudança drástica de hábitos saudáveis foi constatado em uma pesquisa da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Os cientistas analisaram a rotina de mais de 100 estudantes universitários antes e durante a pandemia e observaram índices altos de depressão relacionados ao sedentarismo.
Os especialistas acompanharam a rotina de 120 jovens entre fevereiro e dezembro de 2020 e detectaram que a média de passos dos analisados diminuiu de 10 mil para 4,6 mil por dia. Os pesquisadores também avaliaram a saúde mental dos voluntários e constataram que as taxas de depressão aumentaram de 32% para 61%.
A pesquisa, publicada recentemente no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), também revelou que a restauração a curto prazo da realização de exercícios não melhorou significativamente o bem-estar mental dos universitários. “Isso nos mostra que a contribuição positiva da atividade física para uma mente saudável só é possível com intervenções a longo prazo”, enfatiza, em comunicado, Sally Sadoff, uma das autoras do artigo. “Ao mesmo tempo, nossos resultados mostram que aqueles que mantiveram os exercícios físicos durante a pandemia foram os mais resistentes e menos propensos a sofrer de depressão.”
Segundo Carlos Magno, fisioterapeuta e osteopata da clínica IBPhysical, em Brasília, a realização constante de exercícios é extremamente importante durante uma crise sanitária, mas poucas pessoas mantiveram esse hábito. “Vimos que uma grande parte dos indivíduos ficou inativa, principalmente os idosos, e isso gera perda de massa muscular e danos cognitivos, além da depressão e ansiedade”, diz. “Agora que estamos entrando em uma segunda onda mais perigosa, o que temos alertado é que as pessoas não relaxem, mesmo estando cansadas, e que façam suas atividades dentro de casa”, sugere.
Magno explica que a prevenção de problemas mentais graves e de dores extremamente incômodas pode ser conquistada com atividades simples. “Muitas pessoas estão em home office e, com isso, sofrem com locais inadequados e longas jornadas de tempo em que ficam sentados. A realização de um alongamento completo bem feito já ajuda a evitar isso e substitui aquele tempo que você passaria na academia”, ensina. (VS)
Para elas, distância do trabalho é ruim
A solidão sentida durante a pandemia parece ainda mais expressiva para as mulheres, segundo o grupo americano de pesquisa médica Mayo. Os cientistas observaram o efeito ao analisar dados de 1.996 voluntários que responderam a um questionário sobre amizade, atividades domésticas, relacionamentos amorosos, rejeição e hostilidade. As perguntas foram feitas em dois períodos: fevereiro de 2018 e de maio a dezembro de 2020, quando já vigorava o isolamento.
As mulheres relataram níveis maiores de solidão, em comparação aos homens. Os especialistas acreditam que essa diferença pode ter sido provocada pela redução dos contatos no local de trabalho. “Esse ambiente é, muitas vezes, um espaço de rede social e apoio. Ficar longe dele pode ter prejudicado ainda mais as conexões sociais para as mulheres”, explica Lindsey Philpot, epidemiologista e uma das autoras do estudo.
Para Renata Nayara Figueiredo, médica psiquiatra e presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília, os resultados entram em concordância com outras constatações de especialistas da área. “As mulheres têm uma tendência maior de manter redes de apoio com amigos e família. Quando elas perdem isso de forma tão drástica, podem enfrentar um desgaste bem severo”, afirma. “Sem contar que muitas também sofrem com um excesso de afazeres domésticos, de cuidados com os filhos etc. O gênero feminino também é o que mais sofre com problemas como depressão e ansiedade, o que agrava a situação delas durante esse período de isolamento.”
A especialista também ressalta que o estudo americano reforça a necessidade de seguir as orientações médicas para os tempos de pandemia. “Sempre explicamos aos nossos pacientes que eles precisam manter suas redes de apoio social e afetiva, além de realizar atividades físicas e se manter alerta para indícios de depressão e ansiedade. É essencial saber a hora certa de buscar um especialista caso a situação esteja mais complicada que o normal”, avisa. “A realização e a divulgação de pesquisas como essas ajudam a todos nós. Os pacientes vão saber identificar quando tem um problema que exige mais cuidado, e os profissionais vão entender melhor a situação e, dessa forma, poderão orientar qual o melhor tratamento a seguir.” (VS)