Retrato estilhaçado
Na década de 1980, o artista plástico Wagner Hermusche realizou uma série memorável de gravuras sobre as noites brasilianas. Era uma visão lírica e bucólica da abóbada celeste, com os sinais elétricos, o lugar do sertão, as antenas parabólicas em cima dos prédios e as luzes refratadas pelos carros ou pelos outdoors do Conjunto Nacional.
Eu acho que, em Brasília, somos tomados por uma força gravitacional que nos leva a olhar para o alto e a contemplar o firmamento. Raramente, miramos o chão esturricado. Talvez em nenhuma outra cidade as pessoas mantenham uma interação tão próxima e tão intensa com a esfera celeste. Em vez da transparência diurna, Hermuche prefere a magnitude das noites brasilianas, com seu silêncio espacial.
O shopping Conjunto Nacional, as avenidas largas, os postes de iluminação branca, os painéis luminosos, os viadutos monumentais e a vastidão azulada do céu se estilhaçam em uma visão lisérgica. Se Renato Russo tivesse habilidade plástica, ele se expressaria com essa linguagem elétrica. Hermusche insinua rock’n’roll no concreto e no vazio de Brasília.
Hermusche pinta como se fizesse um solo de guitarra da Legião Urbana ou do Led Zeppelin. As gravuras projetam uma infinidade de gradações de cores do firmamento no planalto central. O talento de Hermusche é de desenhista e de colorista. Suas gravuras transmitem uma radiação de alegria e um traço nervoso, inconcluso e rasurado.
Na noite de um ano-novo, muito antes da pandemia, Hermusche foi convidado por amigos a passar a virada em uma casa em Búzios (RJ). Chegou à noite, entrou na sala devagar, com o senso de observação oriental ligado e, de repente, levou um susto.
O pai dos donos da casa havia morado em Brasília e formado uma coleção de oito gravuras sobre a cidade. Ninguém acreditou quando Hermusche anunciou: “Mas essas gravuras são minhas!” As noites brasilianas cintilavam nas paredes.
Hermusche sempre viveu meio confinado em uma chácara próximo ao Paranoá. Mas, com a pandemia, ele pôde trabalhar mais concentradamente e retomou a série Ruídos Contemporâneos, em que Brasília não é mais abordada de um ponto de vista lírico. A cidade aparece como cenário para as grandes questões contemporâneas encenadas em alta voltagem dramática.
A política de desinformação é revelada nas avenidas sob o sobrevoo dos drones e satélites. Uma figura rodopia no espaço sugado pelo vórtice das logomarcas das grandes corporações. Atiradores de elite se posicionam em pontos estratégicos no alto dos prédios ao lado dos urubus. Os índios são armados de fuzis de alto calibre andando pelas florestas. Excelências vestidas em ternos e tailleurs impecáveis desfilam de motosserras possantes pela Esplanada dos Ministérios, indicando a ameaça ao desmatamento.
Tudo tem o ritmo nervoso, visceral e sensorial das narrativas de histórias em quadrinhos ou dos grafites. Hermusche sempre infiltra um sinal da destruição da natureza nas ficções encenadas no espaço urbano. As peles de animais reaparecem nos casacos das madames. As pinturas de Hermusche nos revelam a representação da loucura que vivemos no instante de maior distopia do Brasil e, por consequência, de Brasília. A série é um retrato estilhaçado da anti-Brasília e do anti-Brasil.
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