EXEMPLO DE LUTA

Dançarina mantém a esperança após doença rara que a deixou paraplégica

Geisiane Aguilar, 24 anos, viu o seu sonho de adolescência ser interrompido por causa da paraplegia. Agora, família e amigos se esforçam para angariar recursos para custear o tratamento da B-Girl Branca, como é conhecida no hip-hop

Jéssica Moura
postado em 05/04/2021 06:00
 (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press           )
(crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press )

Imagine que você é uma garota de 16 anos morando em uma cidade pequena de Goiás, com poucas opções de lazer. Para passar o tempo, insere-se em um grupo de breaking dance. Quanto mais você pratica, melhor se torna: os pés parecem se guiar sozinhos no compasso ritmado da música. Os passos são tão precisos que você se torna uma das melhores B-girls da atualidade, vence competições e começa a percorrer o país em apresentações de dança. Contudo, quatro anos depois, uma doença misteriosa paralisa seus movimentos do pescoço para baixo e interrompe, bruscamente, o seu sonho de viver da dança.

A história não é uma mera imaginação. Geisiane Aguilar, 24 anos, é a protagonista deste enredo real. Para o show continuar, a B-Girl Branca, como é conhecida nas pistas, faz fisioterapia para recuperar a força dos músculos. O custo é alto: são R$ 11 mil por ano para oito sessões mensais.

O amor pela arte e a necessidade da dançarina de dar continuidade ao tratamento mobilizaram a comunidade do hip-hop. No dia 25 de abril, o rapper X vai participar de uma vivência on-line do Projeto A Tenda, o “Diálogos Pandêmicos”, que promove conversas e encontros musicais pela Zoom. Parte dos recursos arrecadados com a venda dos ingressos será repassada para o tratamento de Geisiane. “Apesar do caos que estamos vivendo, tem gente mobilizada para ajudar outro ser humano”, explica Sarah Nascimento, idealizadora do projeto. Os ingressos custam R$ 20 e serão vendidos pelo Sympla.

Sonho de menina

Em 2011, enquanto estava no ensino médio, Geisiane se inscreveu nas oficinas de arte e esporte que ocorriam em uma quadra perto da casa dela, na Cidade Ocidental (GO), no Entorno do Distrito Federal. “Eu queria mesmo era futsal, mas ficava encucada com os movimentos do breaking”, relata. “O professor começou a me passar os passos, fui gostando, ele dizia que eu tinha potencial”, relembra B-Girl. Pouco tempo depois dos primeiros passos na música, ela passou a treinar por quase três horas diárias com o grupo Ready to Dance.

A promessa era de uma carreira promissora. “Já pensou em viajar pelo mundo, ser famosa?”, perguntava o professor. “Comecei a focar nos movimentos mais difíceis”, diz a jovem. Isso incluía dar mortal, moinho de vento e giro de cabeça. Em pouco tempo, participou da primeira batalha, mas perdeu. “Ia treinar mais e vencer”, conta Geisiane.

Para aperfeiçoar os movimentos, ela conta que assistia a vídeos na internet e analisava o desempenho das adversárias. “Pesquisava os nomes de quem estava no auge e via os movimentos que faziam. Buscava o grau de dificuldade e acrescentava algo mais para não ficar igual a elas”, explica. Para viajar aos campeonatos, a estudante panfletava nas ruas da Ocidental. “Nunca viajei de avião, ia mais de busão (ônibus)”, conta.

Preconceito

Ainda que cada vez mais se tornasse referência nas pistas, em casa, a família resistia à carreira de Geisiane. “Diziam que era coisa masculina, que era difícil, que iria me machucar, mas isso não era motivo para não praticar um esporte”, frisa. “Meu pai dizia que eu não ia ganhar nada com isso. Quando venci o campeonato, joguei o dinheiro em cima da mesa. A partir dessa época, começaram a me apoiar”.

Carreira

Quando o nome da B-Girl Branca foi anunciado no Batom Battle e o DJ tocou as canções dançantes de James Brown, a plateia em círculo foi ao delírio. “Eu já entrava na vibe, intimidava a adversária. Competir era bom demais”. A partir de então, a carreira de Geisiane acelerava na velocidade das batidas do rap e do funk: se em um dia ela estava na Ocidental, meses depois já participava de competições individuais e em grupo, conquistando o 1º lugar.

Em dias de batalhas, Geisiane conta que costumava ficar recuada, preparando o “ataque”. “Ficava em um canto, como se fosse uma estratégia, observando as batalhas das b-girls que eu ia pegar, guardava uma carta na manga e entrava forte para passar para a próxima fase”, rememora.

Doença

Contudo, depois de cinco anos como dançarina, de uma hora para outra, a trajetória foi bruscamente interrompida. Em 2016, uma semana após contrair dengue, Geisiane foi ao treinamento normalmente. Enquanto praticava, sentiu uma forte pressão na cabeça e os membros começaram a ficar dormentes. Os amigos a levaram ao hospital da Ocidental, mas por lá só foi receitada uma dipirona para a dor. “Senti todos os meus movimentos indo embora, fui para casa com o corpo todo dormente. Parecia um bebê recém-nascido, o pescoço batia no peito”. Ela foi encaminhada para o hospital de Santa Maria e, por lá, reconheceram a gravidade da situação. “É grave, vamos levar para o Hospital de Base”, disse uma enfermeira. “Eu achava que ia morrer”.

De lá, ela só sairia três meses depois. Com dificuldade para respirar, precisou passar por uma traqueostomia e se comunicava com a ajuda de um alfabeto impresso em uma folha de papel. “Só mexia os olhos e mais nada. Piscava quando passava a caneta sobre a letra”, diz Geisiane. Apesar dos testes, o diagnóstico de Geisiane não era conclusivo. “Conversava muito com Deus naquele estado grave para pedir ajuda”. Os médicos precisaram fazer um procedimento na medula — só então ela começou a melhorar.

“Fui para a enfermaria e começaram a fazer terapia intensiva e fisioterapia. Consegui levantar a cabeça, mexer os dedos, peguei equilíbrio no tronco para sentar na cadeira”. Enquanto isso, sem que ela soubesse, a irmã mais velha fez uma campanha de arrecadação de fundos para custear a estrutura que ela precisaria em casa a partir de então: a cadeira de rodas e a de banho. Depois de um ano de cuidados diários no hospital com exercícios de fisioterapia, o tratamento continuou em casa e em uma clínica particular.

Tratamento

Essa não foi a única vaquinha. A família e amigos fizeram rifa, financiamento coletivo, tudo para arrecadar dinheiro e para pagar o tratamento. Geisiane ainda trabalha como atendente de telemarketing para ajudar a custear as sessões. “Me esforço para ganhar comissão”. Com a pandemia de covid-19, ela suspendeu as sessões na clínica. “Vamos dar um tempo para não arriscar minha vida, se tivesse carro, iria tranquila”.

O diagnóstico só foi apontado em 2021, mais de quatro anos após a primeira crise: “O médico disse que não tem mais a inflamação na medula. Agora é continuar a fisioterapia”. Com uma vaquinha on-line, Geisiane arrecadou R$ 8 mil e conseguiu outros R$ 3 mil com amigos e pagou um ano de sessões. Agora, precisa juntar o dinheiro para mais um ano de tratamento. O reforço do Projeto A Tenda vai contribuir para tanto.

Futuro

Em uma das consultas, ao questionar o médico que a acompanha sobre o prognóstico, ele disse que a chance de Geisiane voltar a andar era de 1%. “Vai que você me surpreende”, lembra. “Vou voltar andando e te abraçar ainda”, garantiu a jovem. “Vejo meus vídeos dançando para não desistir de mim. Gostava de competir, batalhar, levo isso no meu coração e jogo na fisioterapia”. Além de voltar às pistas, Geisiane pretende fazer faculdade. “Quero cursar fisioterapia e passar meu exemplo para outras pessoas”.

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