Águas profundas
Nunca estive perto de morrer, ao menos que eu saiba. Quando criança, no entanto, lembro de, em algumas situações, ter certeza de que meu momento tinha chegado. Não era um sentimento fúnebre infantil. Não fui desses, era só a visão de menino para quem tudo é sempre questão de vida ou morte. Alguns amigos dirão que o drama é de canceriano. Eu não acredito em signos, embora os leia de vez em quando.
Fui pouquíssimo à praia. O mar não tem Minas. Vivi lá até os 18 anos, e o Lago Paranoá, bem, é lindo, mas não faz as vezes de oceano. Eu gostava de água. Visitávamos muito um clube perto da cidade onde morávamos: Náutico Clube Fronteira. Aprendi com meu pai a não dar muita bola para piscinas. A gente preferia o rio e o movimento sutil das águas, os pés encostando nas pedrinhas.
Não foi no Náutico que achei que deixaria a vida para encontrar a eternidade, mas em um espaço maior em outra cidade vizinha. Deslumbrado pelo calor de águas termais, praguejei o modesto clubinho da fronteira e disse que meu pai sempre esteve enganado. “O rio não tá com nada”, disse muito. Inebriado, balançava ao sabor das ondas em uma piscina completamente artificial em que um motor era responsável pela produção das oscilações.
Para quem não conhecia a praia, a violência da movimentação da piscina encantava, e eu me segurava em uma boia amarela e grande demais. Meus pais estavam a quilômetros. Fui a convite de uma tia, enfiado em uma confraternização que não tinha nada a ver comigo. As crianças, como sempre, corriam desesperadas e tentavam se afastar dos adultos, a quem cabia a triste missão de vigiá-las.
Foi numa dessas fugas que tive certeza de que o momento de dizer adeus tinha chegado e eu não poderia nem sequer deixar últimas palavras. Preso à boia, fui seguindo para a borda da piscina, onde era mais fundo. Não dava pé. Eu, entretanto, pensava estar seguro com o equipamento amarelo e as parcas noções de natação aprendidas no Rio Grande.
Não foi bem assim. Perto do motor, as ondas ficaram mais fortes e, num descuido, soltei a mão da boia. Caí. E, como previsto, até me levantei. Menino de rio, não soube lidar com as oscilações mais bravias e sucumbi às profundezas. Depois de engolir alguns tantos mililitros de água e de repetidas vezes afundar, entreguei meu corpo às bênçãos dos santos que me olhassem. Aceitei.
Como num milagre, uma mão me puxou para cima. Era minha tia, se não me engano, que observava de longe a cena que, agora, sei que foi cômica. A piscina com seu metro e meio seria incapaz de castigar até uma criança como eu. Fui salvo, mesmo que não precisasse, e agradeci a segunda chance.
Hoje, ainda prefiro o rio. Tenho pensado muito naquele instante. Agora, há água por todos os lados. Eu me sinto um pouco aquele menino, sufocado e sem esperanças. A diferença é que a piscina atual é bem mais funda e eu, por outro lado, sei que não tenho mais o direito de não tentar sobreviver.
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