A crise econômica desencadeada pelas dificuldades impostas pela pandemia do coronavírus jogou luz a um problema que assola o Brasil: o drama da população mais vulnerável. No Distrito Federal, isso se refletiu no número de benefícios emergenciais solicitados, como auxílio-calamidade, cujas demandas aumentaram consideravelmente (leia Ações). Dar dignidade a essas pessoas e garantir situação menos cruel em meio ao cotidiano da crise tornou-se um dos maiores desafios que o governo local precisa enfrentar.
A mais recente Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que 319 mil domicílios do DF enfrentam situação de insegurança alimentar. Os dados, divulgados em setembro, levam em conta 2017 e 2018. Os números mostram que o problema tem se tornado pior, pois os casos graves aumentaram 250% desde 2013 (leia Para saber mais).
No ano passado, o governador Ibaneis Rocha (MDB) reconheceu, em mais de uma oportunidade, que a fome era uma das principais preocupações do Governo do Distrito Federal (GDF). “A pandemia pegou todos de surpresa. Todas as áreas. Abateu a todos, comércios, empresas. A fome, no ano que vem, vai ser um grande problema que vamos ter”, declarou, em entrevista ao Correio, também em setembro.
Diante desse quadro, o Executivo local garante que passou a tratar como prioridade máxima a questão das famílias carentes e dos vulneráveis. “Com certeza, isso está sendo feito. Fica claro que o social é prioridade quando se vê que, pela primeira vez em seis anos, não há atraso de benefícios. Não se vira o mês sem pagá-los. O DF Sem Miséria era recebido com dois, três meses de atraso. Isso não ocorre mais, além dos programas que instituímos”, disse a secretária de Desenvolvimento Social, a primeira-dama Mayara Noronha.
Para ela, um dos destaques da gestão na área, e uma virada de chave em relação ao tratamento dado ao setor, é o acolhimento de pessoas vulneráveis. “Abrimos as casas de passagem e estamos fazendo com que elas tenham características de um lar. Não é porque não tem para onde ir ou está em um período de transição que uma pessoa não pode ter essa dignidade. Quando se cria esse ambiente, há um vínculo maior e um resultado melhor também”, declarou a chefe da secretaria.
Recentemente, o governo foi muito criticado por ações de desocupação em áreas da capital federal. Um dos pontos questionados foi a falta de atendimento social e o andamento das ações mesmo em meio à pandemia. Mayara afirmou que há acompanhamento constante por equipes de acolhimento e que foram ofertadas soluções para as famílias.
Alimentação
Para lidar diretamente com o problema da fome, a principal aposta foi o programa Prato Cheio. Operacionalizada pelo BRB, a iniciativa substituiu a distribuição de cestas básicas para as famílias cadastradas por um crédito de R$ 250, que pode ser gasto à escolha do beneficiado, para compra de mantimentos no comércio local. “Com o cartão, você dá independência para as famílias, movimenta a economia e garante a segurança alimentar. Antes, gastávamos mais do que as pessoas efetivamente recebiam, porque tínhamos os custos de logística das cestas”, explicou a secretária.
Atualmente, há 32 mil famílias cadastradas, mas a intenção é alcançar, ao menos, 40 mil em 2021. “Eu luto pelas políticas públicas, pelo cartão Prato Cheio, mas não posso ignorar que tudo que envolve o governo leva um tempo. Então, mantivemos, também a assistência direta. Vivemos um cenário de desespero, de fome mundial. Na emergência, a pessoa é atendida até conseguir ser incluída na política em si”, completou Mayara.
» Para saber mais
Insegurança alimentar
A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) analisou a segurança alimentar em 2017 e 2018. A avaliação evidencia que, à época, o Distrito Federal registrou o menor percentual desse indicador desde 2004. Em 2014, o nível grave atingia 14 mil domicílios, mas, na mais recente POF, a fome alcançou 49 mil, um crescimento de 250%.
R$ 58,1
milhões
Valor liquidado entre janeiro e dezembro de 2020, para fornecimento emergencial de alimentos, segundo o Portal da Transparência do DF
» Ações
Prato Cheio
» 32 mil famílias beneficiárias por mês, ao custo de R$ 8
milhões mensais
Restaurantes
comunitários
» 2020: 7,3 milhões de refeições vendidas
» 2021: 1.508.271 refeições vendidas
Auxílios por morte
» 2019: 141 benefícios concedidos
» 2020: 567 benefícios concedidos
» 2021: 47 benefícios concedidos
Auxílios-calamidade
» 2019: 70 concessões
» 2020: 10.232 concessões
» 2021: 1.149 concessões
Bolsas-maternidade
» 2020: 15.969 bolsas entregues
» 2021: 1.034 bolsas entregues
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Luta para sobreviver é diária
Marcelo Alves, 27 anos, veio para o Distrito Federal há seis anos. Morador de uma cidade no sul da Bahia, ele acreditava na promessa de que teria emprego e boas condições de trabalho em uma chácara na zona rural de Brasília. O trabalho, entretanto, tinha características análogas à escravidão. De domingo a domingo, ele cuidava da terra e morava em um barraco de madeirite. Era obrigado a ir a uma igreja e ficou preso.
O baiano abandonou a situação e tentou se firmar na cidade. Conseguiu um emprego e começou um relacionamento. Há pouco mais de dois anos, porém, descobriu, repentinamente, a morte do pai. “Eu liguei para dizer que estava bem, vivo, e me disseram que ele tinha morrido havia cinco dias”, conta Marcelo. Desestabilizado, entrou em crise e se envolveu com drogas. Perdeu o relacionamento e ficou sem direção.
Diante das dificuldades, Marcelo ficou nas ruas. Passou fome, frio e sofreu com o olhar preconceituoso da sociedade. “Fui tratado como marginal. Os olhares eram de desprezo. Foi o que eu senti. As pessoas pensam: ‘Se ele está nessa situação, é porque fez uma coisa errada, está pagando pelos pecados’”.
Inconformado com a realidade, ele pediu ajuda, recentemente, ao Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e foi encaminhado a uma casa de passagem, em Taguatinga, gerida pelo Instituto Tocar com apoio da Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes). “Fui o primeiro acolhido. Eles me receberam com palmas, foi bastante emocionante. Eu me senti especial, abraçado. Vi que, agora, tem um bocado de gente disposta a me ajudar”, ressalta.
Com apoio psicológico, Marcelo trata das feridas que o tempo nas ruas deixou e acredita em um futuro melhor. Planeja conseguir emprego como vigilante, quer se especializar, fazer cursos e ter carteira assinada para garantir os direitos trabalhistas. Está em processo de obter a documentação pessoal que tinha. O sonho maior, no entanto, é voltar a ver a mãe. “Hoje, tenho vergonha de procurá-la. É triste ter de mostrar a ela o filho em um momento de dificuldade. Espero que Deus me dê a oportunidade de trabalhar e encontrá-la”, completa Marcelo.
Socorro
A vendedora Iracema da Silva, 51, é uma entre os milhares de brasilienses que dependem, atualmente, dos auxílios governamentais para sobreviver com dignidade. No início da pandemia, ela teve covid-19 e ficou 26 dias intubada. Recuperada, apesar de algumas sequelas, teve de sair do trabalho para conseguir cuidar dos três netos que moram com ela, pois não tinha condições de contratar alguém para ficar com as crianças.
Moradora de Samambaia, ela procurou o conselho tutelar da região e foi encaminhada para o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) mais próximo. Lá, recebeu atendimento e descobriu que precisaria de dois auxílios: para o aluguel — válido por seis meses — e do cartão Prato Cheio. “Quando saí do trabalho, pensei: como vou dar comida para as crianças? Com certeza, se não fossem esses benefícios, não sei o que seria dos meninos. Não tenho ninguém para me ajudar. Estaria bem complicado”, conta Iracema.