CRÔNICA

Humanos melhores

"A primeira providência para quem deseja perceber Brasília para além dos estereótipos é não confundir a cidade com o que se passa na Praça dos Três Poderes"

Severino Francisco
postado em 20/04/2021 23:04 / atualizado em 21/04/2021 19:26
 (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Dostoiévski escreveu que a compaixão é a mais alta ideia humana. E, mais do que nunca, ela é essencial em meio ao momento dramático da maior crise sanitária da história do país. Há duas semanas, vivi uma história de solidariedade comovente. Minha mulher e eu estávamos parados durante três horas em uma fila de vacinação no drive-thru do Shopping Iguatemi. Quando a fila começou a andar, o nosso carro não deu a partida.

Saí voado para buscar socorro em um centro comercial em frente. Ao retornar, três minutos depois, avistei um rapaz com uniforme de uma seguradora fazendo a religação da bateria. Uma senhora de instinto veloz, que caminhava pela calçada, assistiu a tudo e chamou o rapaz que prestava assistência a outro veículo. Ela ainda teve a presença de espírito de combinar com o dono da caminhonete postada adiante para que eu pudesse alcançá-lo, pegar carona e ser vacinado sem perder o lugar na fila de carros.

Não consegui me vacinar naquele momento, mas saí feliz, tocado por aquele pequeno gesto surpreendente de solidariedade, em um momento de tantas notícias tristes. A ação renovou, por instantes, a minha fé no ser humano. A solidariedade não é uma questão restrita a tempos de pandemia, mas ela ganha um sentido de urgência no contexto da crise sanitária.

Alguns extremistas alardearam a versão de que o coronavírus seria um “comunavírus”. Não, não é um vírus comunista, mas é um vírus comunal, que provoca uma doença coletiva. E, portanto, só poderá ser vencido de maneira conjunta, articulada e coordenada.

Neste momento tão dramático de enfrentamento da maior crise sanitária da história do país, a solidariedade não é apenas uma ação humanitária; é a ação mais inteligente e a mais eficaz para combater os efeitos desagregadores da pandemia. Não adianta furar a fila e rezar pela cartilha do “farinha pouca, meu pirão primeiro”. A solidariedade é a nossa única possibilidade de salvação aos desmandos dos governantes. Ela leva esperança e é a nossa marca de humanidade.

Negar a tragédia sanitária em nome de um novo normal ou de um novo anormal não é a opção mais lúcida. É um momento de tristeza, mas também de comoção, de afeto e de compaixão. A tragédia desperta a nossa humanidade e a nossa solidariedade. Ela encerra uma lição de fatalidade, que deveria nos tornar seres humanos melhores.

Os forasteiros conhecem a cidade pelo que ela tem de pior: a classe política (ressalvadas as honrosas exceções). A primeira providência para quem deseja perceber Brasília para além dos estereótipos é não confundir a cidade com o que se passa na Praça dos Três Poderes. O que transcorre por lá não é responsabilidade exclusiva dos brasilienses.

A maioria das excelências que ocupam aquele espaço foi eleita pelos estados da Federação. Dos 513 deputados federais, somente oito são de Brasília; e dos 81 senadores, apenas três representam Brasília.

A segunda providência seria entender que Brasília não é uma ilha da fantasia; ela tem as suas singularidades, mas é, profundamente, Brasil, com as suas grandezas e misérias. Brasília é a terceira metrópole do país, com 31 regiões administrativas e três milhões de pessoas, ultrapassou Salvador e só fica atrás de São Paulo e Rio de Janeiro. Existem muitas Brasílias dentro de Brasília.

Existe uma construída pelos laços de solidariedade. Ela aflora nas mais diversas situações. Manifesta-se de forma espontânea no cotidiano ou de maneira organizada em instituições para atividades regulares. Envolve a saúde, a assistência social, a vida comunitária e a cultura.

Os médicos que doam saúde em instituições filantrópicas. O grupo de professores e estudantes que conserta respiradores e outros equipamentos hospitalares.

Os que prestam serviços voluntários em creches ou asilos. As instituições que acolhem e dão apoio a pessoas em situação de vulnerabilidade. Os terapeutas que abrem um espaço na agenda para cuidar de pessoas necessitadas. Os que cuidam dos animais abandonados. As hortas comunitárias que se espalham por vários pontos do Plano Piloto, do Guará ou de Sobradinho.

O saxofonista que percorre os blocos do Plano Piloto oferecendo música. Eles tecem uma rede de afeto que anima a cidade há 61 anos. É uma ilusão imaginar que Brasília seja uma ilha de fantasia. Ela tem todas as grandezas e misérias do país. No momento talvez mais distópico do Brasil, as histórias destse caderno celebram uma Brasília pouco conhecida, a que se constrói com ações de solidariedade.

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