Crônica da Cidade

por Severino Francisco
postado em 08/05/2021 23:21 / atualizado em 08/05/2021 23:21

Pessoa misericordiosa

A minha mãe era enfermeira, tinha obsessão por limpeza e sempre portava um frasco de álcool nas mãos para fazer a assepsia de objetos, muito tempo antes da pandemia. Se estivesse viva, estaria na linha de frente do combate ao coronavírus e ainda mais preocupada em sanear tudo com álcool gel. Teria duplicado os cuidados e a paranoia.

Quando admirava muito alguém, ela dizia: “Esta é uma pessoa misericordiosa”. Para ela, a compaixão era o valor mais alto e a maior distinção humana. É interessante porque Fernanda Montenegro também gosta muito de usar a mesma palavra apreciada pela minha mãe. Uma amiga de Salvador, diretora de teatro, que trabalha com crianças e adolescentes em situação de risco, me contou que Fernanda disse a ela: “Você faz um trabalho misericordioso”.

Ao acompanhar a batalha dos profissionais de saúde durante a pandemia, lembrei-me muito da minha mãe. Eles se arriscam todos os dias para salvar vidas. Alguns resolveram mudar-se de casa e evitar o contato com os filhos, as mães ou as avós, em prova de amor verdadeiro. Ou seja: para não contaminar os entes queridos.

Assisti a uma entrevista de uma enfermeira que respondeu à pergunta: de onde tirava força para enfrentar uma batalha tão adversa? “Eu acho que quando a gente consegue ajudar alguém a se curar, isso nos dá uma força sobrenatural para continuar”.

Dona Maria Celuta, a minha mãe, era do signo de leão, o trato com ela nunca foi fácil. Era mandona, controladora e de língua delicadamente ferina. Na adolescência, nós imaginamos que os nossos pais são figuras idealizadas, e não seres humanos com todas as imperfeições que nós também temos. Quando compreendi isso tudo se tornou mais fluído e eu me tornei menos arrogante. O mundo, isso, gira e, mais tarde, a gente pode se ver na nossa filha ou no nosso filho.

Uma mãe pode errar em tudo, menos no essencial: o amor. É a única perfeição ao nosso alcance. Com essa bagagem, estamos prontos para o que der e vier. Ao longo da vida, minha mãe cuidou de muita gente. A compaixão era um instinto e um ofício. E o fato é que sempre apareceram, misteriosamente, verdadeiros anjos ou anjas da guarda para ampará-la quando precisou.

A minha mãe não era de efusões sentimentais. Preferia expressar e concentrar o amor em gestos, providências, cuidados e atos. Certo dia, a minha irmã contratou uma enfermeira para atuar como cuidadora de minha mãe, que morava sozinha em um apartamento na Asa Norte. Tentou ligar várias vezes para saber notícias e não conseguia.

Resolveu ir até o apartamento e, ao chegar, chamou: “Mãe, onde está você?”. A minha mãe apareceu com andar arrastado, desenhou o clássico gesto de “psiu” no dedo indicador e fez a advertência sussurrada: “Silêncio, a cuidadora está dormindo”. Ela era uma pessoa verdadeiramente misericordiosa.

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