Crônica da Cidade

Mudança de naturalidade

Correio Braziliense
postado em 14/05/2021 21:38

Vocês, brasileiros, que me perdoem, mas terei de dar entrada na documentação para mudar de naturalidade. Nasci há mais anos do que vocês, os humanos, saibam precisar. Descobriram, aí, essa coisa de eu ser brasileiro faz, quem sabe, uns dois séculos. Minha memória não anda lá muito boa. Erro tudo. Depois do burnout, o mundo se complicou demais.

Nos últimos tempos, andei preocupado com outras galáxias. Voltei agora e fiquei sabendo que vocês botaram pra quebrar aí embaixo. Na minha época, botar pra quebrar era uma expressão boa. Hoje, está velha, fiquei sabendo ontem, e estou modernizando meu vocabulário. De todo modo, devo dizer que vocês botaram pra quebrar de um jeito muito ruim. O troço está em chamas e eu estou cansado só de pensar no que precisaria fazer para ajudar.

Não é que eu esteja arrependido. Bem, minha condição não dá direito a isso. Vocês leram a Bíblia. Sabem como é. Já fui mais turrão, mas ainda tenho minhas idiossincrasias. Acho que o projeto foi bom. A execução também. Faltou gestão. Deleguei mal essa parte e o negócio saiu dos eixos. Acreditei que vocês conseguiriam resolver tudo a partir das maravilhas que deixei. Como estou vendo, não rolou.

Voltando ao Brasil. Dizem que a voz do povo é a minha voz. Olha, nem sempre. Eu não sou alguém de ficar deixando os outros falarem o que penso. Não sou sujeito de indiretas, nem de covardia. Logo, o que eu quero eu digo e pronto, mesmo que nem soe tão bem. O Brasil fez escolhas muito ruins e quero deixar claro que não tenho nada a ver com isso.

Lá na Academia Universal dos Criadores, virei motivo de chacota. Meus colegas de outras vertentes ficam lendo manchetes de jornais e perguntando como é que eu deixei isso acontecer. Dia desses, entrei na minha sala e tinham colocado a estátua de uma ema na mesa. Heroína, eles disseram. Não achei graça nenhuma e não suporto esse papo de acima de tudo e acima de todos. Geralmente, vem de gente que nem me conheceu. É aquele velha história que vale para mim, para o meu filho e para meia dúzia de bandas superestimadas de rapazes barbudos: o fã-clube é que ferra.

Diante disso, abdico do meu direito de ser brasileiro. Ademais, não há Dorival Caymmi nem Pixinguinha há muito tempo, e eu ando sem paciência para pesquisar no underground — onde estão hoje a maioria dos melhores artistas deste país. Ficou chato, ficou feio, ficou brega. Liguei para o Cacá Diegues e não sei se ele consegue resolver. O Antônio Prata publicou minha carta de demissão um tempo atrás, mas não quero tanto.

Estou em dúvida sobre a minha nova nacionalidade. Pensei em algum lugar inóspito, uma zona não habitada, qualquer região bem longe onde eu não seja obrigado a ver tamanha crueldade. Se souberem de qualquer coisa, por favor, me avisem. Vocês, por enquanto, ainda devem conhecer as maneiras de me encontrar.

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