Se algum dia a pergunta final do Show do Milhão for sobre o título do Sporting na temporada 2020/21, encerrando 19 anos de jejum, sugiro pedir ajuda ao universitário Hugo Silva de Almeida. Formado em educação física pela UnB, o brasiliense de 27 anos é um dos técnicos made in Brasília em ação na Europa. Trabalha na base (sub-16) do clube português , acumula licenças da CBF, da Uefa, conclui mestrado em futebol, na capital Lisboa, e é pé-quente: iniciou a carreira como treinador do time da UnB. Quando tinha 24, levou o Capital ao título da segunda divisão do Candangão. Agora, é testemunha da revolução do Sporting. Ao Correio, ele fala sobre o colega Rúben Amorim, mentor do título nacional. Explica como ele superou os badalados Jorge Jesus (Benfica) e Sérgio Conceição (Porto). E alfineta ao justificar a ausência de protagonistas brasileiros no Sporting: “Não é mais a potência de 19 anos atrás. Isso pode ser falha no processo de formação”.
O Sporting volta a ser campeão depois de 19 anos. O que explica o fim da fila?
São três pilares. O primeiro, a aposta da direção no técnico Ruben Amorim pelo valor de 10 milhões de euros. Ele era do Sporting Braga. Era o melhor perfil para o momento financeiro, político e estrutural do clube, que necessitava voltar às origens de clube formador. O Sporting é um dos cinco maiores do mundo e o único formador de dois jogadores melhores do mundo (Figo e Cristiano Ronaldo). Ruben Amorim potencializa atletas jovens e extrai desempenho. O segundo pilar é a liderança do Ruben Amorim. Ele pregou união e coesão em meio à crise. O terceiro pilar são os atletas. Mais de 50% da equipe titular é oriunda da base. Isso passa de 70% no plantel. Eles mostraram espírito coletivo e valorizaram a opotunidade.
Rúben Amorim é outro técnico português promissor. Quais são os diferenciais dele?
O discurso é sempre muito coerente, pés no chão, lúcido. É um personagem agregador, evita conflitos, oba-oba, falta de humildade. Eu destaco, também, a forma como ele e a comissão técnica preparam o jogo, o embate com os adversários. Aplicam conceitos únicos. Ele é muito original, não dá para comparar com outros padrões.
Como ele superou Jorge Jesus (Benfica) e Segio Conceição (Porto) no Português?
Ao contrário do Jorge Jesus e do Sergio Conceição, ele trabalhou, no início, sem pressão. Nunca foi meta principal do Sporting ser campeão em 2021. A meta era voltar à Champions League. Título era projeto para duas, três temporadas. O Rúben Amorim manteve as convicções. Nunca jogou contra árbitros, imprensa ou jogadores. Estava focado no trabalho dele. Conseguiu manter o equilíbrio do time nos momentos regulares e irregulares em três ou quatro rodadas.
Alguma escola influencia o Sporting?
O clube carrega consigo da base ao principal um modelo de jogo próprio. Tem influência da própria escola portuguesa. Ela é muito forte. Impacta em muitos lugares do mundo. Vimos isso na ida do Jesus para o Flamengo, agora com o Abel no Palmeiras, e em outros portugueses pelo mundo nas ligas nacionais, Champions e Europa League. Isso vem do sucesso do José Mourinho, Carlos Queiroz e do próprio Jesualdo Ferreira.
Como foi a revolução do Sporting?
O clube estava em uma posição financeira, política e estrutural difícil. O ápice foi a Invasão de Alcochete, quando torcedores invadiram o Centro de Treinamento e bateram em jogadores, no treinador (Jorge Jesus era o comandante do time à época). Foi o episódio mais triste do clube. O título nacional estava quase ganho. O plano de reestruturação passa basicamente por resgatar a cultura de formação e aproveitamento de jovens talentos da base que tenham performance, sejam valorizados e devolvam ao clube, nas vendas, o investimento feito neles. Rúben Amorim faz isso bem.
O Sporting não tem mais jogadores brasileiros como protagonistas. Por quê?
O Brasil não é a mais a potência de 19 anos atrás (2002), ano em que a Seleção conquistou a Copa pela última vez. Parou de produzir Ronaldos, Romários, Romários, Kakás, Rivaldos... Tínhamos por hábito dois ou três brigando pelo prêmio de melhor do mundo, seleções favoritas nos torneios. Atletas com performance nos grandes times do mundo. Hoje, temos o Neymar. É o único. Isso pode ser decorrência de falhas no processo de formação. Tem a ver com a soberba de ser o único pentacampeão. Nos acomodamos. O Sporting tinha protagonistas brasileiros no título de 19 anos atrás (Jardel, André Cruz e César Prates).
Pedro Gonçalves é o artilheiro do time...
Embora não seja formado na base do Sporting, ele é oriundo de um bom recrutamento que fizeram no Famalicão na temporada passada. É um jogador com potencial. Eu vejo o Pedro Gonçalves chegando à seleção portuguesa.
A torcida do Sporting esperou 19 anos pelo título e não estava no estádio.
As festas da torcida nas rodadas que antecederam o título e no jogo da conquista foram nos arredores do estádio e em alguns pontos de Lisboa. Eu só vi o que aconteceu aqui na chegada do Brasil com a taça, aí em Brasília, depois do título na Copa de 2002. Teve agolomeração, fogos, algumas confusões. O torcedor não conseguiu se conter.
Qual é a influência da base no título?
Foi crucial. A cultura do clube gira em torno disso. Os torcedores incentivam a formação. O título é reflexo do que o Sporting faz há décadas. Alguns campeões (de 2021) só têm no currículo a passagem pelo Sporting. Poucos não foram formados no clube. São títulos ‘made in Sporting’. Dos 11 titulares, 50%, 40%, são oriundos da base. Se você olhar no mundo quem faz isso, são muito poucos. A influência foi total da base.
Você trabalha na base do Sporting. O título aumenta a responsabilidade?
Tudo que eu e a estrutura fazemos na base sempre exigiu responsabilidade. Estamos formando cidadãos, com valores, moral, ética. Muitos deles não se tornarão atletas profissionais. O ser humano está acima do futebol. O título traz valorização e mostra que o nosso trabalho está sendo bem feito há muito tempo.
Você nasceu no DF e começou aqui. O que levou de aprendizado para Portugal?
Fui atleta até os 19 anos. Joguei nos juniores do Ceilândia, meu último clube. Assinei contrato profissional, mas não atuei. Encerrei a carreira para estudar. Em 2016, voltei ao futebol como atleta jogando na equipe da Universidade de Brasília (UnB). Na altura de junho daquele ano, o treinador recebeu proposta para atuar no exterior e fui convidado a assumir a equipe da UnB. Não era algo que planejava ou queria, mas aceitei para evitar o fim daquele projeto. Foi a melhor decisão que tive. Fui treinador por três anos. Paralelamente, trabalhei como analista de desempenho da Portuguesa-SP, do Flamengo de Guarulhos (SP) e passei pelo Paranoá em 2017 e 2018, onde comecei como auxiliar. O Capital fez uma parceria com a UnB e eu tive a primeira chance de treinar um time profissional no Candangão da segunda divisão de 2017. Ficamos em oitavo lugar entre 10 equipes.
Aí veio o título da segundinha no Capital.
Fui técnico do Capital na conquista do título da segunda divisão de 2018. O treinador mais jovem do Brasil a conquistar o título. Fui o técnico do Capital no início do Candangão 2019 e virei auxiliar. Trabalhei na Anapolina como auxiliar do Waldemar Lemos, ex-Flamengo. Decidi fazer mestrado em futebol e vim para Portugal. Comecei no Oriental, passei pelo Encarnação e, há quase um ano, estou no Sporting. O que trago de Brasília, da UnB, é a experiência com as dificuldades. Não tinha a estrutura de hoje: campo, materiais, recursos humanos, financeiros. Tirei o máximo com pouco. Hoje, com muito, faço mais ainda.
Qual é sua opinião sobre o futebol do DF?
Comecei a ter gosto pelo futebol por volta de 2003. Meu pai me levava para eu ver jogos no Bezerrão (Gama). Ali comecei a desenvolver a minha paixão pelo futebol e pelo meu clube do coração, que é o Gama. Por ser muito observador, vi bem a regressão do futebol de Brasília. Tínhamos um time na Série A, outro na B e dois na terceira divisão. Fazíamos frente contra adversários de nome, camisa.
Por que o futebol candango regrediu?
Estamos no quarto escalão nacional. Isso se deve à falta de profissionalismo, ao comodismo. Há pouca renovação de dirigentes. São praticamente os mesmos de 20 anos atrás. Sonho, almejo colaborar, levar meu legado para ajudar Brasília a voltar a patamares superiores, mas, hoje, o cenário do futebol local é muito triste. O único ponto que me alegra é o futebol feminino. Vejo muito empenho, dedicação, inconformismo no Minas Brasília e no Real Brasília. É onde vejo boas perspectivas para os próximos anos.
Escolheu ser técnico ou foi escolhido?
Foi a profissão que me escolheu. Quando recebi o convite, não me achava capaz. Desde então, o processo nesses cinco anos tem sido de descoberta. Eu me descobri como profissional e ser humano. Encontrei a vocação da minha vida. Acordo diariamente motivado. Reflito em relação ao que posso aprender.
Por que já pouca paciência com técnicos da cidade como você,
Marco Soares, Rafael Toledo, Victor Santana e outros?
Um lado, que me deixa triste, é a desvalorização dos profissionais da cidade. Tem outro ponto. Alguns nomes que você citou têm status fora do futebol local e até brasileiro. Até acima do que é, hoje, o futebol local. Para eles, estar no futebol de Brasília seria regressão. O futebol daí está na pior fase, e alguns desses profissionais no auge. Há incapacidade de valorizar o que é da terra, da cidade, da cultura local. Acontece e não é de hoje.
Como vãos os estudos em Portugal?
Estou concluindo o mestrado e a Licença B da Uefa. Correndo atrás para obter a Licença C da Uefa. Tenho a Licença C da CBF, sou formado em educação física — licenciatura plena na UnB e pós-graduado em fisiologia do exercício.
Cristiano Ronaldo é cria do Sporting. Tem outro CR7 sainda da fornalha por aí?
Embora a história dele seja pequena aqui, é o grande nome do Sporting. Tem um grande impacto no clube. O maior nome da história do futebol português. É difícil afirmar se teremos outro. Trata-se de um atleta muito forte tecnicamente, fisicamente, psicologicamente, com um mind set muito bom, formação muito boa no Sporting e progressão de carreira excelente feita por ele e o agente. Ele é um ponto muito fora da curva. Difícil achar alguém com a maturidade dele.
E a vida em Portugal?
Vivo há dois anos longe da família. Morei no litoral em uma cidade praiana e pacata. Agora, vivo uma vida mais agitada, em Lisboa. O português preza pela qualidade de vida. Valoriza-se menos o status social e mais a qualidade de vida. Valoriza-se sentar para tomar um café e jogar conversa fora, sentar na praia, tomar cerveja e observar a paisagem. Aqui, desfruta-se mais a vida.
O que esperar de Portugal na Euro?
É candidato ao bicampeonato. O título de 2016 coroou um trabalho que vinha sendo feito há muito tempo. Sem a pressão do primeiro título e o status de atual campeão, com técnicos e jogadores em destaque, vejo Portugal candidato ao título da Euro e da Copa do Mundo no próximo ano. Tudo coopera para isso.
Você tem nome de jogador português: Hugo Almeida. Era melhor do que o xará?
Estive longe da performance dele. Representou muito bem a seleção. Fui um jogador bem mediano, mediano baixo. Não teria possibilidade de alcançar, como jogador, o que consegui até aqui como treinador. Foi melhor não seguir a carreira.
Quais são os próximos passos na carreira?
Quero concluir essa temporada da melhor forma possível. Vou completar um ano de Sporting e meu vínculo está acabando. Não sei se meu futuro é no clube. Em médio prazo, quero voltar a exercer a função de técnico principal, que ocupei nos três primeiros anos da carreira. Minha paixão é liderar processos. Em um terceiro momento, desejo fazer trabalho em clube grandes. Vejo potencial em mim para isso. Fixar residência na Europa ou não é indiferente. Costumo dizer que não sou preso a pessoas nem a lugares. Gosto de viver em diferentes contextos. Morei em pelo menos três, quatro cidades, graças ao futebol.
Quais são os cantinhos preferidos do brasiliense Hugo Almeida no DF?
Tenho três. Primeiramente, o Gama, a cidade da minha família. Fiz muitos amigos. O segundo cantinho é o Guará, onde vivi a minha infância, adolescência e transição para a fase adulta. O meu lar. O terceiro é o lugar mais bonito de Brasília em termos de paisagem, ambiente. Aquelas regiões próximas do Lago Paranoá, onde a gente pode sentar, observar o céu, a movimentação das águas. Não abro mão desse lugar quando estou aí em Brasília. É um dos maiores bens que o brasiliense tem e deve valorizar.
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