Crônica da Cidade

Os burros

Alexandre de Paula
postado em 21/05/2021 20:36

É impossível contar essa história sem me sentir constrangido. Talvez, o melhor fosse esquecê-la e destinar a ela o destino que damos aos livros chatos abandonados na estante e às lições de trigonometria quando se decide pelas ciências humanas. É complicado também porque há algo de ridículo e de frívolo, mas quase todos os acontecimentos da infância guardam um pouco desse sentimento.

Meus amigos, quando ouvem essa história, morrem de rir. É impressionante como não preciso dizer quase nada. O acontecimento resolve tudo. Não sei se é o ambiente rural, distante demais para os brasilienses mais encarcerados no concreto, que tem esse efeito cômico e inusitado. Tenho dúvidas se eles, de fato, conseguem visualizar com clareza a cena que narro.

Algo me diz que, agora, é impossível também entregar qualquer coisa nesta crônica que não funcione como um anticlímax. Espero que não. Gosto de contar essa história. Sempre me fez lembrar de detalhes do meu passado idílico e distante nas tardes empoeiradas de Minas Gerais.

Vamos à história, enfim. Aprendi a andar de bicicleta tarde, se comparado aos meus amigos. Foi na mesma época em que comecei a ler. Nunca fui prodígio, tinha 7 anos. Talvez, por isso, embora saiba conduzir com alguma competência, eu jamais tenha sido um exímio ciclista. Eu deveria ter uns 10, 11 anos na época em que essa história se passa. Era início dos anos 2000.

Eu, minha tia e uma prima decidimos (bem, elas decidiram e eu fui atrás) visitar um sítio em que vivia outra prima nossa, com o marido e os filhos. Eles trabalhavam por lá. Ficava a uns sete ou oito quilômetros do distrito em que morávamos. Por alguma razão inexplicável, os três sedentários acreditaram que era uma boa ideia fazer o trajeto de bicicleta. Há dois anos, estive lá, e o cenário continuava igual. A estrada de terra, as árvores tortas e o domínio das plantações devastadoras de cana permanecem firmes. Os pés saem tingidos de marrom e, para um alérgico como eu, o dia depois é sempre terrível com tosses e dores de cabeça lancinantes.

Mais para a metade do que para o começo do caminho, fiquei cansado. Reclamei um tanto e minhas pernas também. Está chegando, diziam elas. E eu, tolo, acreditava. As mãos cambaleando no guidão foram o prenúncio de algo estranho que, por mais imaginativos que fôssemos, ninguém suspeitava.

Para separar as terras e impedir que o gado se misture, havia as porteiras fechadas, que enchiam o saco. Minha tia, à frente, desceu para abrir uma delas. Eu vinha atrás no último fôlego, em um esforço enorme para continuar. Fui rápido. Ela, nem tanto. A porteira fechada impedia o avanço e havia um mata-burros entre nós.

Freei com força, em cima da estrutura projetada para enganar animais cuja inteligência nós, humanos, consideramos, provavelmente sem razão, parca. Não me equilibrei e fui tombando. De repente, estava preso entre as ferragens, como um burro, um cavalo que não soube se esquivar — embora eu não tenha notícia de que os bichos de fato tenham caído nessa. Precisei de ajuda para me levantar e, desde então, tenho máximo respeito por esses animais que, em hipótese alguma, deveriam ser tratados — ao contrário de um certo governante e sua turma — com tanto desprezo.

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