O ano chega próximo da metade e não concretizamos nem um terço das nossas metas. A procrastinação pode ter sido a responsável por parte desse quadro melancólico. A falta de tempo, por outra. Mas muito do que nos levou a essa situação, a esse hic et nunc aterrador, que nos envolve como um furacão e carrega para dentro de um vórtice de tormentas sem-fim, estava fora do nosso alcance.
Impossível controlar essa epidemia de catástrofes que tantos se esforçaram tanto para não evitar. O Brasil, hoje, é o resultado desse caos conduzido por tantos que juram ter agido nas melhores das intenções. Não citarei o ditado que me vem à cabeça neste momento, mas compartilho a seguir trechos da obra de um homem que decifrou o país com certa sutileza, por assim dizer.
As cenas de uma certa sabatina que agitou a política na última semana e que promete capítulos reveladores nos próximos dias — nem tanto da verdade senão da índole daqueles que optaram por guiar os caminhos da nação — me lembrou do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Separei especialmente alguns trechos do julgamento final, comandado por Manuel, Jesus Cristo.
A certa altura, quando Deus aparece para os incrédulos espectadores no banco dos “réus”, João Grilo o interroga sobre a cor da sua pele, ao que é repreendido pelo bispo, que pede silêncio. “Cale-se você”, responde Manuel. “Com que autoridade está repreendendo os outros? Você foi um bispo indigno de minha Igreja, mundano, autoritário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exercer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação era ser humilde, porque tanto mais alta é a função, mais generosidade e virtude requer.”
E o sermão segue: “Que direito tem você de repreender João porque falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em vida e provou sua sinceridade exibindo seu pensamento. Você estava mais espantado do que ele e escondeu essa admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou”.
O padre, antes mesmo de ser julgado, começa a se complicar. “Eu, por mim, nunca soube o que era preconceito de raça”, disse. Ao que o diabo, advogado de acusação na cena do célebre auto, responde: “É mentira. Só batizava os meninos pretos depois dos brancos”. “Mentira! Eu muitas vezes batizei os pretos na frente”, retruca o padre. “Muitas vezes, não, poucas vezes, e mesmo essas poucas quando os pretos eram ricos”, emendou o diabo. E o padre segue na defesa do indefensável: “Prova de que eu não me importava com a cor, de que o que mais me interessava…” “Era a posição social e o dinheiro, não é, Padre João? Mas deixemos isso, sua vez há de chegar. Pela ordem, cabe a vez ao bispo”, interrompe Jesus.
E o diabo elenca os pecados do bispo. “Negociou o cargo, aprovando o enterro de um cachorro em latim, porque o dono lhe deu seis contos.” “E é proibido?”, questiona o réu. “Homem, se é proibido eu não sei. O que eu sei é que você achava que era e depois, de repente, passou a achar que não era”, resume o encouraçado.
A verdade pode até não vir à tona, mas em momentos tais quais o do juízo final, as máscaras começam a cair. “O tempo da mentira já passou.”
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