Crônica da Cidade

História de uma batalha

Severino Francisco
postado em 25/05/2021 20:26

Em 1979, no ápice do período de redemocratização do país, uma notícia provocou indignação: o prédio do Cine Cultura da 507 Sul seria vendido pela Terracap. Para quem não sabe, aquele era um ponto de referência muito importante para a cultura em Brasília. Lá, o crítico e professor Paulo Emílio Sales Gomes fez, nos tempos inaugurais da cidade, palestras memoráveis na apresentação das mostras de filmes, que desembocaram na criação do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

E, mais do que isso: as palestras de Paulo Emílio foram o nascedouro de uma cultura cinematográfica em Brasília. Paulo Emílio foi, ao lado de Glauber Rocha, o principal teórico de um cinema brasileiro moderno. Quem assistiu Paulo Emílio em ação conta que ele era um orador fascinante, que tinha o poder de magnetizar as plateias com a inteligência, a erudição e a paixão pelo cinema.

Não tive o privilégio de assistir a nenhuma palestra de Paulo Emílio, mas posso aquilatar o fascínio que ele exercia porque acompanhei várias apresentações de Rogério Costa Rodrigues, discípulo do mestre. Rogério inoculou a paixão pelo cinema em diversas gerações de brasilienses. Por isso, quando circulou a notícia da venda do Cine Cultura, fomos tomados pela indignação e pelo desejo de preservar o espaço.

Com o apoio moral de Athos Bulcão e Vladimir Carvalho, os jovens se mobilizaram e organizaram um movimento de resistência, que teve como ponto culminante um grande show em uma pracinha próxima ao Cine Cultura. Eu começava a trabalhar em jornal e me dispus a pegar depoimentos de Oscar Niemeyer e Ferreira Gullar em apoio ao movimento de preservação do Cine Cultura.

Marquei com os dois e viajei para o Rio de Janeiro. Gullar havia sido o primeiro diretor da Fundação Cultural do DF. Ele me recebeu de maneira muito cordial, conversamos por mais de duas horas e o poeta evocou a passagem por Brasília com muitos detalhes. Brincou que um dos seus legados eram as garrafinhas de areia colorida, vendidas na Torre de TV, pois ele pediu para vir de São Luís, sua terra natal.

Mas tive problemas com Oscar Niemeyer. Estávamos no fim do regime militar, ele era muito visado e ficou receoso de ter represálias. Argumentei que havia um movimento de jovens para defender a cidade que ele tinha criado. Eu não podia nem desembarcar em Brasília sem essa declaração de apoio.

Fiquei com medo de que ele me mandasse para aquele lugar, mas Niemeyer se sensibilizou: “Você é muito insistente, mas é simpático. Vamos fazer o seguinte: eu escrevo um depoimento. Está bom assim?” Pensei na diagramação da matéria e ainda barganhei: “Será que o senhor faria um desenho para eu publicar?” Ele concordou e voltei feliz para Brasília, com a carga preciosa na bagagem.

Publiquei a entrevista de Gullar e o depoimento de Niemeyer, o movimento promoveu o show, a Terracap recuou, enrolou, mas vendeu o prédio, sorrateiramente, depois. Foi um crime contra o patrimônio histórico de Brasília. O Cine Brasília virou um prédio-fantasma na W3 Sul. Eles ganham, mas a cidade fica mais pobre de espírito.

Lembrei desse capítulo da história da cultura em Brasília por causa do despejo que o Teatro Goldoni recebeu com a venda pela Terracap do prédio onde funcionava a Casa d’Itália. Eles ganham, mas a cidade fica mais pobre de espírito. Espero que o secretário de Cultura, Bartolomeu Rodrigues, se sensibilize e encontre outro lugar para que o Teatro Goldoni continue funcionando, pois é um ponto de referência das artes cênicas na cidade.

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