A cachaça nossa de cada dia nos dai hoje
O espirituoso papa Francisco disse que o Brasil não tem salvação. O país, segundo ele, reza pouco e bebe muita cachaça. É complicado discordar de Sua Santidade, hermano Jorge, mas trago alguns dados. De acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), o mercado nacional do destilado registrou queda de quase 24% em 2020. Os números foram divulgados recentemente a partir da análise do relatório anual produzido pela Euromonitor International.
Pesaram para o resultado negativo alguns fatores, explicam os especialistas do setor. O principal, é claro, foram os efeitos causados pela pandemia, que resultou em fechamento, por meses, de bares e restaurantes, lugares onde o consumo da iguaria brasileira é maior. Mas há outras questões que são um pouco mais profundas.
A concorrência com os destilados importados — como o gin, o whisky e a vodka — complicou tudo já faz algum tempo, o que deixou o setor mais exposto às intempéries, como ocorreu na pandemia. Em verdade, verdade vos digo, papa Francisco, que o brasileiro, em geral, tem vergonha da cachaça. Prefere a pompa das bebidas trazidas do exterior, vez ou outra em versões falsificadas.
A branquinha ficou estigmatizada. É muito associada a produtos de baixa qualidade e ao consumo indiscriminado. Cachaceiro é xingamento. Não é verdade que cachaça é bebida menor. O destilado brasileiro tem muito valor, o que se pode comprovar pelo apreço de bartenders gringos por ele. Não dá para dizer que cachaça é ruim se o que se provou foi a farsa das indústrias — a da boa ideia, por exemplo. Nos alambiques e em destilarias sérias, o negócio é bem feito. Mas, por aqui, prefere-se, numa atitude meio colonizada, gastar mais de uma centena de reais em um whisky mais ou menos a pagar R$ 40 numa boa cachaça.
Ao que me parece, temos aí também outro problema da autoestima nacional. Como alguém pode ter a coragem de substituir cachaça por vodka na caipirinha? A propósito, uma boa caipira não se faz na coqueteleira. Eis uma receita quase infalível, utilidade pública: bota-se 10 g de açúcar e um limão taiti cortado em meias-luas num copo; macera-se o cítrico com delicadeza para não amargar; acrescenta-se 50 ml de cachaça (branca, por favor); mexe-se com bastante gelo; e pronto. Simples e bom, como a gente prefere não ser num país muito dado a rococós fora de lugar.
A cachaça também brilha em coquetéis mais elaborados, como mostra o cronista Julio Bernardo, do Boteco do JB, no excelente livro A mão que balança o copo — Drinks fáceis para dias difíceis. Eu, acá, hermano Bergoglio, sigo com a minha caninha e oro para que, além do pão, o Pai nos conceda a cachaça nossa de cada dia, porque sem ela, como diria um outro Francisco, ninguém segura esse rojão chamado Brasil.
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